Pular para o conteúdo principal

O sol, a caixinha e o porta-retrato


   Liz não falou muita coisa no carro do pai, e disse um “obrigada” bastante murcho para agradecer por tê-la deixado em casa. Saltou e, olhando do portão do prédio, esboçou um sorriso ao ver o carro se afastar. Ela substituiu seu “boa tarde” animado por um apenas educado, e o porteiro do horário estranhou a entonação de sua voz. Liz era a moradora mais simpática de todo o condomínio, e aquilo definitivamente não era normal.
Ela não esperou o elevador: subiu de escada para ir pensando. Nenhuma lágrima escorria do seu rosto. Todas as gotas que molhavam os degraus caíam de seus cabelos ensopados. Liz não soluçou, não chorou, apenas soltou um suspiro; era triste, mas aquilo a deixava mais leve. Ela chegou ao seu andar, e lembrou-se do último beijo de boa noite que dera naquele hall, um mês e meio antes. Já passava das dez horas, e sua mãe lhe lançava olhares indiretos para que ela dirigisse o namorado/ficante/peguete/amigo à porta. Depois de protelar um pouco, ela percebeu que não tinha mais jeito. E então aproveitou cada segundo do lado de fora.
Abriu a porta, e lembrou-se da surpresa que teve quando o primeiro namorado – mais de dois anos antes – lhe mandou um cartão anônimo declarando seu amor incondicional. Ele era um poeta dos bons, pensou, e precisava de mais do que os sentimentos de uma garotinha iniciante. Luís Roberto era daqueles que queria viver intensamente, se apaixonar loucamente, e declarar tudo isso ao mundo. Era um amante da vida, e via beleza até no piscar da lâmpada do poste de sua rua. O poema que escrevera para ela era uma obra-prima, e a classificava como mais que musa, mas deusa. Liz se encantou de primeira, mas não sabia quem era o admirador. Três meses se passaram até que ele, depois de dezenas de lindas poesias, conseguisse se apresentar. Namoraram por duas semanas e meia, até Luís Roberto perceber que precisava mesmo era de um amor platônico para ter inspiração, e não de alguém real. Liz só precisou de mais uma semana para perceber que se encantara pelo poeta, mas nunca pelo namorado.
Ela passou pela sala rapidamente, sem dar muita atenção ao sofá bege encostado na parede. Mas o sofá continuava ali, para lembrá-la do dia em que, depois de voltar das aulas de inglês numa conversa animada com o vizinho, os dois decidiram esticar um pouquinho a tarde... E seu primeiro beijo aconteceu ali, meio sem jeito, meio engraçado, meio desastrado, meio fofo. Os pais dela, ainda casados, chegaram exatamente um minuto depois de ele ter entrado no elevador, e Liz se trancou no quarto, nervosa e corada, ansiosa para contar às amigas sobre todas aquelas novas sensações. Seu romance com Felipe, porém, não durara muito, e dele ela só guardou uma lição esquecida na carteira da sala de inglês.
Liz foi em direção à cozinha, decidida que um pouco de chocolate era o mais adequado para o momento. Observou suas unhas feitas no dia anterior, pintadas de Vermelho 40 graus, ainda na esperança de que o churrasco “prometia”. Ela costumava usar aquele esmalte quando saía à noite com as amigas, ou quando tinha alguém em vista. Achava que dava sorte. Tinha sido assim com Matheus, Caco, Thiago – não exatamente, porque esse nem se dignou a mandar uma mensagem no dia seguinte... Mas, considerando que aquele tinha sido o melhor beijo de sua vida, Thiago tinha, sim, dado certo –, Gabriel e Yuri. Dos três últimos, ela não tinha guardado nada, afinal, meninos de festa não mereciam um lugar na sua caixinha especial. Os dois primeiros eram diferentes: Matheus a tinha chamado para ir ao cinema, e os ingressos estavam, até hoje, guardados com a nota fiscal da pipoca, do refri e do sundae. Caco foi seu segundo namorado e, dos cinco meses que passaram juntos, Liz mantinha um bilhete, um frasco de perfume, um bichinho de pelúcia, alguns cacarecos e a carta que ele deixou no dia em que se despediram no aeroporto. Ele tinha um futuro brilhante pela frente, que incluía uma faculdade americana, um emprego em Manhattan, muito dinheiro e, quem sabe, supermodelos para namorar. Mas Liz não estava nesse futuro, e não ia sofrer por isso.
Seguiu para o banheiro e tirou o biquíni, tentando ignorar as horas que demorou para escolher qual caía melhor em seu corpo, que saída de praia combinava mais e todos os chocolates que não comeu só para estar linda naquele churrasco. O rímel à prova d’água recém-comprado ainda estava em sua bolsa, e o creme bronzeador ainda ocupava um espaço valioso em sua pia. Ela tinha investido bastante tempo e dinheiro se preparando para arrasar naquele churrasco, decidida a reconquistá-lo.
Liz seguiu para o quarto, já vestida com seu pijama mais quentinho e acolhedor. A foto deles estava lá, no porta-retratos branco que ficava no centro de sua bancada. Tinha corações vermelhos e um post-it já um pouco abatido, mas que ainda continha a mensagem rabiscada rapidamente e à lápis: “você é o sol do meu dia”, ele tinha escrito. Ela olhou pela janela, e observou o céu crepuscular. Todos os dias eram seguidos de noite. Todo sol se punha no final.
                Ela levantou a foto, fitando seu olhar doce. Como era bonito... Desviou o olhar para a sua própria imagem, tão sorridente. Aquele sorriso era sua maior defesa, sua melhor característica. Como estava feliz ao lado dele, como queria aquela sensação de volta... Liz balançou a cabeça, tentando afastar aquela vontade. Ela já tinha feito tudo que podia, já tinha esperado e sonhado demais. E, naquela manhã, teve a prova viva de que, para ele, tudo já havia acabado. No bendito churrasco – tão planejado por ela, mas que fugiu tanto de seus planos – ela o viu aos beijos com uma caloura. Não queria ter visto aquilo, mas precisava. Precisava de um ponto final, de um tiro em suas expectativas que já demoravam bastante.
Ela respirou fundo, tentando esquecer a imagem. Tinha gostado tanto dele, por tanto tempo... Tinha sentido seu coração completo ao seu lado, tinha aberto seus maiores segredos, tinha se apaixonado como ainda não havia se apaixonado por ninguém. Mas ele não sentia isso. Gostava dela, tinha certeza. Era uma boa menina, uma boa amiga, uma ficante legal. Mas, por algum motivo oculto às suas consciências, não era por ela que seu coração saltitava. Não era por ninguém que conhecesse, pelo menos até o presente momento. Ele também não tinha culpa.
Não importava que ele não tivesse culpa alguma, porém. Ele foi honesto, mas covarde. Se afastou antes de se envolver com a outra ou as outras que ela não soubesse, mas nunca teve a coragem necessária para terminar o que, oficialmente, nunca havia começado. Liz continuou a olhar sua foto, num misto de raiva, dor, amor e solidão. Sua última chance tinha passado. Ela abriu o fundo, descolou a foto do vidro e liberou o porta-retratos para uma foto só sua, de suas amigas ou de sua família. Ou, quem sabe, mais tarde, até de um novo amor.
Por mais raiva e frustração que sentisse, não rasgou a fotografia que tinha em mãos. Respirou fundo novamente, pegou a escada e subiu até o maleiro do seu armário. Lá do fundo, puxou uma caixa rosa e a abriu com um suspiro. Depositou a foto lá dentro, sabendo que suas boas lembranças estariam guardadas, e seu amor seria preservado. Ela era feita de passados, de sonhos, romances e histórias que se somavam naquela caixa de lembranças e significados. Guardava todos, mas não para se prender às suas vivências antigas; queria aprender com as experiências.
Liz olhou novamente para a janela, depois de algum tempo perdida em seus devaneios amorosos e filosóficos. Já era noite. Suspirou mais uma vez, olhando para os próprios pés, e decidiu subir na escada para colocar novamente a caixa no fundo do maleiro. Seu coração, um tanto quanto machucado, não estava vazio: estava livre para amar novamente. E todas aquelas cicatrizes, ela pensou, eram o que a faziam única e especial, e cada vez mais forte. Ela tinha superado, ou pelo menos estava em processo de superação. Já foi dormir um pouco mais feliz, com seu sorriso típico e brilhante estampado no rosto.
O sol se põe todos os dias, é verdade. Mas renasce sem falta em todos os dias seguintes.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Amor-passarinho

O amor precisa ser livre. Se não for, simplesmente não será amor. O amor precisa ser livre como passarinho. Precisa poder voar. Precisa ter a liberdade de construir outro ninho. O amor precisa ficar porque quer estar. Não adianta muito ficar apenas porque as asas cortadas já não conseguem voar.  O amor precisa ser livre - no início, no meio e no final - para que continue sendo amor, não posse. Precisa ser livre para poder se transformar, sem se prender em amarras. Só o amor livre consegue se transmutar em outras formas de gostar. O amor precisa ser livre, ainda que seja para voarmos para longe dele. É preciso perceber a hora de pousar, mas também a de ir embora. O amor livre é aquele que se alegra com os grandes voos do outro, mesmo que os ventos levem para outros caminhos. Gosto da metáfora do amor-passarinho: dos voos, dos ninhos, da beleza de poder ir, da sinceridade do querer ficar, da independência de conseguir planar sozinho.  Meu amor-passarinho vive d

Bicicleta ou casamento?

    Eu sou indecisão. Sinto muito se não foi assim que você planejou, mas eu simplesmente não planejei. Tudo bem, até que planejei, mas aí achei que o primeiro plano estava ruim, parti para o segundo, e devo ter chegado até o Plano Z, mas, bem, não deu muito certo. Então digamos que não foi planejado e pronto.    Eu tive que pedir opinião a trocentas amigas para me ajudarem a escolher entre o meu vestido preto, soltinho e costas nuas, ou aquele branco tubinho, quando você me convidou para o primeiro jantar com a sua família. E lembra o que eu acabei usando? Isso mesmo, aquela minha saia longa azul com uma blusa bege.    Eu não sabia se aceitava o sorvete de chocolate ou o picolé de amendoim naquele nosso primeiro encontro, e acabei tomando os dois. Eu não sabia se devia te dar a mão ou segurar o catavento que você comprou para mim, e então você mesmo puxou minha mão, com catavento, com suor frio de ansiedade e com uma gota do picolé que estava escorrendo porque eu não tinha

Eu voltarei a escrever

Soube hoje pela manhã que ontem foi dia do escritor. E precisava escrever e, principalmente, precisava vir aqui falar isso, depois desse jejum antiestratégico de alguns meses. Eu não sou uma escritora profissional – não vivo disso e nunca tive qualquer lucro com a escrita – mas emocional. Eu escrevo quando algo me desperta emoções, quando eu quero despertar emoções. E eu parei de escrever porque as emoções que eu podia catalisar – no meio de tanta dor e desespero, no auge da segunda onda da pandemia – não eram boas. Não quero ser um roteador de angústias e sentimentos ruins. A vida tem sido esquisita há um bom tempo: isolada do mundo, das pessoas queridas, dos grandes e bons momentos. Nada acontece aqui dentro. Lá fora, o mundo parece querer acabar. Me divido entre o tédio de não ter o que contar e o medo de assistir, de longe, o que pode acontecer. Parei de escrever. Mas escrever também tem sido a minha válvula de escape há anos. Eu escrevo sobre despedidas, partidas, dores, amores,