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Lola e a tolice salvadora

  
 “Ai. Meu. Deus. Merda.”
   São três horas e alguns minutos a mais na madrugada, a janela está aberta e um vento forte uiva lá fora, no escuro da rua residencial. Lola não reconhece de primeira onde está, nem o que aquele peso todo sobre seu tórax significa, mas está dificultando sua respiração. Seu celular começa a tocar, dentro do short jeans que ficou perto da porta do quarto que ela começa a identificar.
   Não, não pode ser. Agora ela não sabe do que sentir mais raiva: do toque estridente e irritante que ela nunca se preocupou em trocar, das estrelas fluorescentes (que há um tempo ela ainda achava o máximo) coladas no teto do quarto, que a fazem perceber exatamente onde está, ou do braço pesado que descansa sobre seu corpo, braço esse que pertence a uma pessoa tão irritante quanto, roncando ao seu lado.
   “Por quê?” É a única coisa que consegue pensar, enquanto se desvencilha daquele braço incômodo, sem nem se dar ao trabalho de observar o rosto do dono, pega todas as suas roupas jogadas no chão, veste-se rapidamente e, ao mesmo tempo, atende ao celular. “Oi, tudo bem. Certo, estou indo. Ok. Eu a deixo em casa, não se preocupe. É, diga que não tem problema nenhum. Certo. Desçam em quinze minutos. Beijo, tchau”.
   Lola não precisa olhar mais uma vez para o rapaz dorminhoco, o peitoral forte descendo e subindo por causa da respiração, para saber que ele continuará nesse estado preguiçoso por muito tempo. Não, ela o conhece demais para saber, sem nem olhar, que dormir é um de seus “esportes preferidos”, vindo logo atrás de se olhar no espelho após a academia – atividade física é um porre, ele disse uma vez. Gostava era do resultado – e conquistar mais e mais vítimas para seu “abatedouro”. Sim, ele era do tipo nojento que dava apelidinhos mais nojentos ainda para seu quarto e outras coisas inapropriadas.
   Ela não teve paciência para esperar o elevador, e não era por causa da irmã mais nova que havia acabado de ligar dizendo que a festa já não estava mais tão boa, que ela já podia ir buscá-la e se ela podia, por favor, deixar sua amiga em casa? Aquele lugar era simplesmente sufocante. O quarto, o apartamento, o hall, o elevador... Tudo trazia lembranças demais, e não eram boas. Lola foi descendo as escadas de dois em dois degraus – e não é que as escadas também não trouxessem lembranças, mas correr ajudava a afastá-las – e logo estava na garagem.
   Seu carro estava muito mal estacionado, e ela agradeceu por seu pai não ter visto aquilo, ou ele mais uma vez amaldiçoaria o sexo feminino. Mas não, ela era uma boa motorista. Uma ótima motorista, uma vez ele dissera. Só que, no momento em que estacionou, estava com pressa demais para subir. E dessa vez, foi ela mesma quem se amaldiçoou. “Como pode ser tão tola, Lola?”, repetiu algumas vezes.
   Pôs-se a dirigir para fora dali. Entre sinais vermelhos – os quais ela ultrapassava sem problema, por já se tratar da madrugada, e também porque a ideia de uma jovem moça sozinha no carro parecia ser bem atraente para assaltantes – e alguns poucos carros que também rodavam na cidade, àquela hora, ela se perguntava, entre tantas coisas, como? Como deixou acontecer? Como foi novamente tão tola? E ela também xingava muito. Bastante. Tudo bem, não era exatamente xingar, porque ela tinha aprendido desde muito nova que xingar era feio e que não deveria fazer aquilo, então se controlava. Mas digamos que palavras como “merda” ou “droga” saíssem com tanta raiva e com uma conotação tão forte, que seria melhor tapar os ouvidos de qualquer forma.
   E então ela se lembrou. Não exatamente do porque tinha sido tola naquela noite, mas do porque era tola em todas elas. Desde a primeira vez, quando aquele cara entrou em sua sala de aula, já uma semana após o início do terceiro semestre do curso de Direito. Sua postura jogada para trás, meio displicente, meio desafiadora. Seu cabelo completamente despenteado, a bermuda descombinando com a blusa. Ele era exatamente o oposto de tudo que ela imaginava para si. Para falar a verdade, ela até hoje se perguntava o que a havia atraído tanto nele e, mais ainda, o que fez com que ele se sentisse atraído por ela. E, meu Deus, aquele sorriso.
   Ele era o sinônimo de aventura, descoberta, novidade. Tudo nele era inédito, surpreendente. Tudo para ele era intenso e incrível. Ele se aproximou rápido, atrevido, e mudou tudo nela. Seu jeito de pensar, de ver o mundo, de enxergar as pessoas, de sentir as coisas... Tudo fora repentinamente alterado. Ela nunca sabia o que esperar, mas sempre era pega com o coração na boca, as mãos suadas e as pernas bambas. Ali, sim, Lola descobriu o que era estar apaixonada. E que paixão, ela suspirou. Lembrou, mesmo ainda praguejando contra o rapaz, dos momentos únicos que haviam compartilhado.
   Quase sentiu vontade de dar meia volta, pegar o próximo retorno antes da ponte e voltar furtiva para seu apartamento, se encaixar novamente em seus braços e fingir que nunca havia saído dali. Nem naquela noite, nem muito menos há uns dois meses, quando saiu batendo portas, gritando e se debulhando em lágrimas. Ele a havia ensinado tantas coisas... Jogar sinuca, pegar onda, filar uma aula ou outra, dançar, tirava algumas de suas dúvidas em relação à faculdade, e ainda a havia ensinado a beber, seu projeto mais lento. Não precisou do álcool quando a beijou a primeira vez, um beijo roubado na véspera do feriado. Mas, não fosse o álcool, não teria nem conseguido encostar nela nesta última.
   Suas doces lembranças dele como amante, porém, não eram independentes. Elas sempre vinham grudadas com seu perfil não compatível com relacionamentos sérios, por mais que estivessem oficialmente namorando. Estavam de braços dados com sua infidelidade, seu individualismo, egocentrismo e sempre, sem exceção, com sua irresponsabilidade. O que antes ela classificava como destemor, agora era pura e simples falta de noção. E ele voltava a ser, em questão de segundos, o idiota filho da égua que a havia levado ao céu e ao inferno. Que a tirou de sua zona de conforto, lhe mostrou o que era a paixão – daquele tipo tão forte e intensa que ela sairia correndo e gritando “não viaja sem me dar um último beijo!” pelo aeroporto, como em cenas de novela – para lhe fazer conhecer a traição. E ela, como sempre, a inexperiente e tola Lola, caiu novamente em sua rede.
   Estava com tanta raiva – dele, de si mesma, do mundo – que não percebeu o carro desacelerando gradativamente até que ele estivesse completamente parado, bem no meio da ponte. Tentou ligar, acelerar mais uma vez, mas nada acontecia. Nem o painel acendia. Saiu do carro, tentando descobrir o que havia acontecido, mas não era algo visível. “Droga!”, gritou, desafiando o vento forte e gélido. “Ai. Meu. Deus. Merda.” Estava parada no meio da ponte, sozinha, às três e pouca da madrugada. Sabia lá o que podia acontecer com ela. E como sairia dali?
   “Merda!”, ela ouviu. E agora xingou mentalmente, porque sabia que não tinha falado aquilo, que não podia ser eco e que, se não havia mais carros além do seu na ponte, só podia ser um fantasma. “Assombração, agora não. Por favor”, ela repetiu baixinho, as pernas já trêmulas. Virou-se lentamente e qual não foi sua surpresa ao perceber que ali, no meio da ponte e às três e pouca da madrugada, havia outra pessoa. Uma pessoa de carne e osso. Mas do outro lado da grade.
   “Ai. Meu. Deus. Ele vai se matar”, ela pensou, ainda mais nervosa que antes. “O que está fazendo?”, ela gritou, mesmo já sabendo a resposta. “O quê?”, o cara do outro lado gritou também, por mais que parecesse ter entendido a pergunta. Havia muito vento, os dois estavam visivelmente nervosos, e parecia que nenhum deles queria realmente pronunciar as palavras que descreviam a situação. Gritar era, sem dúvida, a melhor opção.
   “O que você faz...?”, ela perguntou novamente, sem jeito. E ele respondeu, com a melhor das intenções, “Jornalismo”. Lola suspirou, talvez pela tensão do momento, talvez pela resposta tão sem nexo. Poderia repetir a pergunta, mas provavelmente era melhor falar mesmo sobre algum outro assunto, desviá-lo do ímpeto suicida e chamar reforços, se soubesse a quem chamar. “Mas eu gosto mesmo é de fazer poesia”, ele completou, depois de um silêncio tenso. Lola concluiu que, dentre todas as opções que tinha, fazê-lo falar era mesmo a melhor de todas.
   “E sobre o que você gosta de escrever?”, ela gritou ainda mais alto, forçando para que sua voz não falhasse. Tentava se aproximar devagar, sem saber ao certo para o que apelaria: chantagem emocional do tipo não-posso-ver-alguém-morrer ou, quando ele menos esperasse, o agarraria por trás, puxaria para a parte segura da ponte, o colocaria em seu carro e o trancaria até que alguém o levasse em segurança até um hospício? Analisou bem as duas opções, percebendo que não teria força física suficiente para realizar a segunda e que, mais provavelmente, acabaria caindo junto com ele.
   “Amor”, ele suspirou. Não precisou gritar, mesmo que ela ainda não estivesse tão perto assim. Era só que aquela palavrinha mágica era um sentimento universal, e não precisava da brutalidade de gritos de um suicida para ser descrita. “É algo muito nobre”, Lola disse, pensando nas instruções claras que a professora de yoga deu naquela única aula experimental a que ela foi. A respiração era a chave para tudo. Força e calma.
   “É uma maravilha”, ele falou, parecendo extremamente alegre. “Mas é a doença de todo poeta”. Lola já estava mais perto da grade, e ele pôde perceber sua expressão interrogativa. “Só consigo escrever bem quando estou realmente triste”. Ela abriu a boca como que para dizer algo, mas não fazia a mínima ideia do que fazer. Ficaram em silêncio por um bom tempo, mas não era como aqueles silêncios constrangedores entre pessoas que se gostam, mas não sabem o que falar para puxar assunto. Era como um silêncio do tipo ele-vai-se-jogar-e-eu-não-sei-como-impedir mesmo.
   “Ouvi dizer que amor vivo é texto morto”, Lola falou, citando um texto que havia lido no último mês. Achou que aquilo combinava bastante com o que o rapaz havia dito e que, pela beleza das palavras, talvez o comovesse. “E o que acontece se o poeta é quem morre?”, ele perguntou, mas ainda com as mãos bem firmes na grade. Lola pigarreou, tentando elaborar uma boa resposta o mais rápido possível. “Bem, eternizam-se os poemas já escritos, mas outros tantos calam-se com ele”.
   O rapaz fechou os olhos e apenas sentiu o vento bater e beijar sua face. Tudo ao mesmo tempo. A vida que lhe fazia sofrer e ao mesmo tempo pular de alegria, as emoções que ele tanto queria. Ficou assim, seguro do lado de fora da ponte, conversando com uma estranha moça do carro quebrado, as roupas mal arrumadas e a blusa pelo avesso. “E então, qual é o caso?”, ela perguntou, já bem próxima de onde ele estava. “Que caso?”, foi a vez dele de perguntar, ainda absorto em suas reflexões.
   “Por que está aqui?”, Lola perguntou, a voz já mais doce e, na medida do possível, calma. “Eu amei demais. Parei de escrever poemas, parei de me importar com tudo que não fosse sobre ela, que não fosse ela. E agora... Ela me deixou. Ela terminou tudo, menos de um mês antes do casamento”. Ela não comentou que ele parecia ser muito jovem para casar – devia ter a sua idade – ou para precisar se matar por amor, que ainda conheceria muitas pessoas, que talvez ela não fosse boa o suficiente para ele e todas aquelas coisas que dizia para suas amigas. “E por que não escreve um poema sobre isso? Talvez ajude...”
   “É muito amor para caber em um papel. É muito amor para caber em mim. E é por isso que...”, ele falou, e a voz foi sumindo enquanto ele soltava uma mão da grade. Mas, naquele momento, a inexperiente e sempre tola Lola foi mais esperta do que poderia se esperar, do que ela mesma esperava de si. “Mas que tolice”, ela disse, puxando sua mão para que pudesse lhe dar um beijo. Um beijo daqueles, como o ex-namorado havia lhe ensinado – é, ele tinha uma serventia – que o derrubou da grade. Para o lado certo, é claro.

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