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Já fui tanto


   Hoje é um dia chuvoso. Tem dias que isso me dá vontade de chorar, tem dias que parece uma ótima oportunidade para assistir a uns filmes tomando chocolate quente. Já fui inverno, já fui verão, hoje me encontro interseção, vazio. Não aquele vazio melancólico, mas algo como uma página em branco. Uma página em branco, na frente de um escritor que está louco para preenchê-la. Uma página que parece querer voar nos olhos do escritor, dançar até as suas mãos e suplicar para que ele lhe dê uma história, um desenho, um sentimento.
   Já fui a borboleta mais colorida a voar no céu, e também já fui aquela que preferiu ficar um tempo a mais no casulo. Já fui aquela flor de cor viva e pétalas macias, espalhando seu perfume e radiando alegria ao se exibir para o sol. Também já fui aquela flor murcha, quase marrom, as pétalas despencando como um peso insuportável. Hoje? Sinto-me como o botão ainda verde, esperando que a água, o sol e a primavera me libertem novamente às cores, aos perfumes e aos sorrisos.
   Já fui o chocolate crocante, o meio amargo e o creme de avelãs que não deixaram os morangos contarem a história no dia seguinte. Também já fui o chocolate com licor de cereja que ficou esquecido em cima da mesa, esperando que alguém desistisse da ilusão de que um dia o comeria. Hoje, não sei. Talvez seja o cacau esperando para ser colhido, ou talvez as sementes que secam ao sol, ou, com sorte, a manteiga já pronta para se misturar aos outros ingredientes.
   Já fui o destaque, já fui staff, hoje sou plateia. Uma plateia curiosa, animada, cheia de ideias que borbulham e lutam para terem seu próprio roteiro. Já fui pé no chão, já andei nas nuvens, já fui completa metáfora e já abusei de metalinguagem. Hoje sou prosopopeia, com muito orgulho. Já fui epílogo, hoje me sinto prefácio. Já fui razão, emoção, mas e hoje? Hoje é só o intervalo de tempo entre o ontem e o amanhã, e sinto mais que a pura sensação - sinto a efervescência. A preparação, a suposição, a antecipação, a felicidade da incerteza meio certa: as nuvens vão se abrir, não sei quando. Mas o sol vai aparecer, o botão vai aflorar, o verão vai chegar, e as borboletas finalmente vão voar.

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