“Ei, Jade, o que está lendo?” ou
“Ei, Jade, você já fez o fichamento que o Bigode pediu?” ou “Ei, Jade, posso
almoçar na sua casa hoje?”. Era sempre assim. Ela estava sempre distraída
demais, ou entretida demais, ou empolgada demais. Ele era mais pé no chão. O
que os dois eram? Bem, até uns três meses atrás, em fevereiro, não eram
absolutamente nada. Não existia os dois.
Sim, eles se conheciam. Sim, eles tinham estudado juntos na terceira ou quarta
série. Eles sabiam o nome um do outro, se esbarravam ocasionalmente pelos
corredores do colégio ou nas festas que frequentavam, possuíam alguns amigos em
comum. E, no máximo, tinham trocado algumas palavras umas dez vezes na vida.
Tudo mudou em janeiro, quando a
lista dos aprovados saiu. Curso difícil, concorrência alta, faculdade federal.
É claro que Jade não esperava passar. Fez a prova por desencargo de
consciência, para dizer a todo mundo que não era tão irresponsável assim, que
pelo menos tinha tentado. Não se preocupou em esperar o horário em que poderia
sair com o caderno de questões, apenas o entregou e foi embora, andando
levemente por aquelas calçadas tortas, as quais já conhecia tão bem que, mesmo
de olhos vendados, não torceria o pé. Ela só deixou o vento bater em seus
cabelos, tão relaxada quanto no dia em que liberaram o gabarito, e ela
simplesmente nem tentou corrigir. E estava igualmente relaxada no dia em que
liberaram o resultado, mas ela nem se deu ao trabalho de olhar. Sabia que não
havia passado, e pronto, isso era suficiente.
Algumas de suas amigas estavam
loucas com aquele resultado, mas Jade simplesmente ignorou todas as
notificações do Whatsapp. Não ia entrar naquele stress, não mesmo. Dormiu
muito, acordou, viu alguns programas na TV, e nada de procurar o bendito
resultado. Para quê?, ela se perguntava quando um pouco de curiosidade a
atingia. Foi então que apareceu aquela outra notificação, do chat do seu
Facebook. Rodrigo Pacheco. Ela fez uma lista mental dos Rodrigos que conhecia,
tentando lembrar qual deles teria o sobrenome Pacheco. Alguém do colégio?
Talvez da natação ou do inglês? Algum menino insignificante que tinha ficado em
alguma festa há muito tempo atrás, e cometido o erro de aceitá-lo? Será que era
primo do Pachecão, seu vizinho da antiga rua, que procurava confusão com todos,
mas que sempre a defendia quando os outros vinham bater nela, depois de tanto
ela provocar?
O grande problema era que o
celular de Jade não abria as mensagens do Facebook, e sua curiosidade não era
maior que a preguiça, então Rodrigo Pacheco teria que, sinto muito, esperar. E
assim a mensagem dele esperou, por horas à fio, até que ela se dignasse a
levantar, ligar o notebook, fazer log in e então descobrir que sim, era aquele
menino do colégio, umas três salas de distância, que estudou com ela há muitos
anos atrás. Mas o que ele queria, por favor, depois que os dois já tinham
completado o Ensino Médio e provavelmente nunca mais se veriam?
Parabéns!, dizia a mensagem dele.
“Achava que você ia fazer medicina”, ele continuou, o que provocou muitas
risadas de Jade. Risadas sarcásticas, porque a) ela nunca cogitou nenhuma das
profissões na área de saúde e b) pelo ritmo de estudo e sua participação nas
aulas, ficava bem claro que ela não tinha a mínima intenção de cursar medicina,
mas ela ainda queria muito saber o que aquele – praticamente – desconhecido
queria falar com ela, então... “mas fiquei muito feliz em saber que não!”. Oi?!
Que cara esquisito. “Enfim, você deve estar me achando louco, e sei que não
somos próximos para eu vir conversar com você assim do nada, mas é muito bom
saber que não vamos começar o curso sozinhos numa faculdade como a Federal.
Então, te vejo na matrícula?”. É, ele simplesmente terminou a mensagem assim.
Que idiota, Jade sentiu vontade de dizer. É muita sacanagem alguém fazer uma
brincadeirinha dessas, mesmo que aparentemente ela não ligasse para o
resultado.
Mas, espera um pouco... E se não
fosse brincadeira? O coração acelerou, as mãos começaram a suar. E quem disse
que agora ela conseguia digitar algo certo? Como ia ver o resultado com dedos
tão trêmulos? Que idiota, pensou novamente. Não se podia jogar uma bomba
daquelas na pessoa e terminar a mensagem daquele jeito, não. Aquilo era quase
antiético!
Do dia fatídico em que ela
descobriu que – milagrosamente, como fazia questão de dizer a todos que a
parabenizavam – havia mesmo passado no curso desejado, para a melhor faculdade
do estado – aquilo tudo não costumava acontecer com ela, acrescentava
mentalmente – até o dia em que as aulas finalmente começaram, Jade e Rodrigo se
falaram algumas vezes. Se encontraram no dia da matrícula, mas ele já estava
saindo quando ela ainda estava chegando. Trocaram algumas informações pelo chat
do Facebook, comentaram sobre as expectativas para o trote, sobre a loucura da
grade de horários e, na véspera, trocaram os números de celular para que
pudessem se encontrar logo na entrada e seguirem juntos.
Daí em diante a amizade só
cresceu. Eram trabalhos juntos, debates e discussões, caronas, ônibus e lanches
compartilhados. Não que tivessem muito em comum – divergiam sobre gostos
musicais, culinários e políticos, radicalmente no último item – mas o simples
fato de serem os únicos conhecidos de cada um deles, de estarem num lugar
completamente novo e submetidos a uma rotina completamente diferente de tudo
que já estavam acostumados era suficiente para que, em menos de duas semanas,
os dois já trocassem reflexões filosóficas.
Era uma daquelas amizades raras,
que surgia quase que do nada e crescia em um ritmo louco, mesmo sem que os dois
percebessem. Em pouco tempo, até a mãe de Jade já conhecia as histórias mais
malucas de Rodrigo, porque a própria Jade as contava entusiasmada durante o
jantar, como se ela mesma houvesse participado das aventuras. Não demorou nem
um mês para que ela – que nunca havia levado sequer um garoto em casa –
oferecesse seu lar para que o amigo almoçasse às terças-feiras, quando também
tinham aula à tarde e, se quisesse, tirasse um cochilo e, não, é claro que não
havia problema algum, tomasse um banho, podia ficar bem à vontade.
Rodrigo, sempre cuidadoso e
atencioso, de início ficou envergonhado e preferiu não aceitar a oferta. Mas,
como a necessidade faz o homem, lá estava ele, na terça-feira seguinte,
desfrutando de uma deliciosa comida caseira, uma boa chuveirada naqueles dias
quentes e um sofá aconchegante para tirar um cochilo antes de mais horas e
horas de aula. Aproximou-se de Leda, a cozinheira, e de Thiago, o irmão mais
novo de Jade, com quem sempre jogava uma partidinha ou outra de videogame.
“Digo!”, chamou Jade, numa
terça-feira lá para maio, quando os dois já eram tão próximos em nível de
trocar confidências sentimentais – não todas e não sempre, Rodrigo aprendeu
depois do trote. Mas isso não era assunto para lembrar, porque ele prometera a
Jade, enquanto ela ainda estava bastante bêbada, que esqueceria – e ele apenas
seguiu em direção ao seu quarto, a porta aberta. Ele entrou, despreocupado, e
sentou na cama, esperando que ela saísse do seu banheiro. “Caio me chamou para
ir à praia no sábado, sabe?”, sua voz saiu de lá do banheiro, mas ela
continuava sem aparecer. Ele não precisou responder, pois já a conhecia a ponto
de saber que aquele “sabe?” que ela sempre colocava no fim das frases era
apenas um vício. “Eu acho ele bem interessante. Não lindo nem nada, sabe? Mas,
como eu posso dizer? Bom... Bem
interessante. Enfim, eu aceitei”.
Rodrigo sabia que ela havia
aceitado, porque ela já havia lhe pedido opinião sobre o fato de o primeiro
encontro de um casal ser na praia. Sim, Caio queria “conferir o material” antes
de arriscar a convivência em sala, foi a conclusão dos dois. Portanto, não
precisava prestar muita atenção naquela parte introdutória, e gastava seus
neurônios tentando imaginar, com o muito que havia conhecido com aqueles meses
de convivência intensa, como Jade o classificaria. Ele ficaria satisfeito com
um “bem interessante”? Provavelmente
não. Muito provavelmente não.
“Só que eu realmente fiquei
pensando sobre aquilo que nós conversamos, sobre ele querer ‘analisar o
material’ e tal...”, ela continuou. Naqueles breves segundos, ele pensou que
ela fosse desistir da praia, achar tudo aquilo um comportamento machista, dizer
que o cara era um babaca e que ia voltar atrás sobre o que havia dito no trote.
Ele chegou até a pensar que ela havia se lembrado do que havia dito ou o que havia
acontecido no trote, mas não. “E percebi que preciso impressionar. E, para
isso, preciso de uma opinião masculina. Mas é claro que não dá para pedir para
meu pai ou Thiago me dizerem qual biquíni me deixa com o corpo mais bonito,
‘sexy sem ser vulgar’, como aquelas meninas gostam de falar. Então, bem... Você
simplesmente precisa me ajudar. Imagine que você é Caio e, por favor, me ajude
a escolher esse biquíni”.
Seguiram-se perguntas e
comentários, desfiles, viradinhas, encaradas no espelho, mais perguntas
estranhas de se fazer para um amigo menino, como “esse valorizou mais a minha
bunda, não é?”, e respostas envergonhadas, como “é, eu preferi a sua bunda
nesse”, que vinham acompanhadas de rostos vermelhos e silêncios um tanto quanto
constrangedores. Depois que Jade experimentou todos os seus treze biquínis –
sim, ela gostava muito de praia – e Rodrigo comentou, pacientemente, sobre cada
um deles, os dois perceberam que estavam um pouco atrasados para voltarem à
faculdade. Se fossem em ritmo de caminhada tranquila, chegavam em quinze
minutos. Andando rápido, em cerca de dez. Se corressem, chegavam em um recorde
de cinco minutos. O grande problema era que, e Deus sabia lá como o tempo tinha
passado tão rápido, faltava apenas dois minutos para a aula começar.
Jade se trocou em um tempo
milagroso, jogando todos os biquínis dentro do guarda-roupa e correndo feito
doida para o banheiro. Nessa loucura toda, nem se lembrou de fechar a porta. E,
por mais que não fosse a intenção, ele juraria para si mesmo mais tarde, não dá
para dizer que Rodrigo ficou triste pela visão que teve do reflexo do espelho.
Os dois correram como não faziam desde crianças, ultrapassando as pessoas
lentas na calçada e gritando em busca de um táxi. Não adiantou nada e, por mais
que soubessem que, não havia como, a aula já havia começado, decidiram que
mesmo assim deveriam continuar correndo e diminuir o atraso para o menor tempo
possível. Pelo menos, pareceria que tinham se esforçado para chegar no horário,
e não causariam uma impressão tão ruim assim.
A impressão que causaram, no
entanto, foi completamente diferente da que pretendiam. “Chegaram atrasados,
vermelhos, sem fôlego e envergonhados. Ainda mais esses dois, que vivem pra
cima e pra baixo juntos. E você reparou que a blusa da Jade estava pelo avesso?
E a cara de bobo que o Rodrigo ficou o resto da aula, lembrando de alguma
coisa? Ah, minha filha, aí tem...” diriam as más línguas mais tarde, assim que
tivessem qualquer intervalo para fofoca. Tanto falaram, que Caio chamou
discretamente Jade no fim do dia e disse que, perdão, mas teria que visitar a
Tia Conceição no interior, naquele fim de semana. Ela era uma senhorinha muito
doce, mas estava doente e sua visita era indispensável para animá-la. Então,
quem sabe num outro fim de semana? Quem sabe, ele não ligava quando voltasse do
interior, e eles não marcavam alguma coisa? Ele não ligou.
E, para falar a verdade, Jade
também não ligou muito não. Pediu pela alma da boa senhorinha Conceição – se é
que ela realmente existia – pela quantidade de vezes que já devia ter sido
usada como desculpa esfarrapada. E, com o perdão da senhora, no sábado ela
estava na praia, tomando um pouco de sol, um bom banho de mar e dando muita
risada com as amigas.
E assim o final de semana passou,
e logo a semana inteira, e as outras semanas também. Eles já estavam estudando
para as provas finais, e Rodrigo passava tardes e mais tardes na casa de Jade,
muito além dos almoços das terças-feiras. Sem que ela soubesse, até Tia Ana,
irmã de seu pai, já o havia alertado: “Preste atenção, isso vai dar em algo
mais. Ou acha que o menino fica aí todos esses dias por nada?”. A verdade é que
Rodrigo realmente não precisava, mesmo, de todas aquelas horas a mais de
estudo. Mas, como bom amigo que era, percebeu que Jade estava com algumas
dificuldades e prontamente se ofereceu para ajudá-la.
Em uma dessas tardes, quando os
dois já estavam esparramados no sofá, livros abertos e as mentes fervendo de tantos
textos que haviam lido, trabalhado, sublinhado, resumido e todos os outros procedimentos
que julgavam necessários para compreender bem o conteúdo, Jade percebeu que
estava morta de fome e se dirigiu à cozinha para pegar algo que pudessem comer.
“Você vai para o reg na casa de Hugo?”, ela perguntou, voltando com um prato de
biscoitos na mão. Se havia uma regra de estudos que Jade respeitava sempre, era
a que dizia que era necessário um intervalo para oxigenar o cérebro. E, para
ser melhor, esse intervalo sempre era regado a lanches gostosos e conversas
leves.
“Não sei, você vai?”, Rodrigo
perguntou. Isso tinha se tornado rotina na amizade dos dois. Ele não era muito
de sair, Jade não curtia muito ficar em casa. Mas, quando estavam juntos, não
importava muito onde, sempre se divertiam. Então, revezavam bem. Acontece que
Jade sempre recebia os convites para regs, churrascos, feijoadas,
confraternizações, happy hours e etc. E Rodrigo, como bom amigo que era, achava
que deveria sempre acompanhá-la, para o caso de acontecer algo desagradável.
“Acho que sim”, ela respondeu,
pousando o prato no sofá para sentar-se. “E também acho que você pre-ci-sa ir”.
Ele ficou um tempo em silêncio, pensando se, finalmente, ela havia se lembrado
dos acontecimentos do trote. “Sabe a Júlia? Do terceiro semestre?”, ele
balançou a cabeça afirmativamente. Já não estava mais tão animado em relação
àquele bendito reg. “Então, ela malha na mesma academia onde eu faço natação, e
no outro dia estávamos no banheiro na mesma hora, aí ela veio me perguntar...
Você sabia que ela é prima de Luana, da nossa sala?”. É claro que ele não
sabia, mas o que aquilo importava?
“Enfim, ela disse que Luana
comentou alguma coisa com ela, e você não tem ideia do que ela me perguntou!”.
É, ele não tinha mesmo. “Ela chegou assim, falando baixinho, e soltou ‘Você e
Rodrigo estão juntos, né?’. Eu comecei a rir, claro”. Não é que Rodrigo
estivesse rindo de como aquilo fora uma suposição doida ou engraçada, como Jade
parecia achar. Não. Ele estava sorrindo, claro, e aquilo parecia também uma
mistura de risada histérica causada por um pouco de nervosismo. Além daquela
risadinha sem graça que se dá quando não há nada para falar.
“É, mas podia...”, ele começou,
ainda mais sem graça, tentando organizar as palavras da melhor maneira. Não
parecia funcionar muito bem, porque ela estava com uma grande cara de
interrogação. “Esquece. Foi estúpido”, ele disse, baixando a cabeça. Jade ainda
estava sem entender, e perguntou, pelo amor de Deus, o que ele queria dizer com
aquilo? “Quer dizer... Não seria muito louco? Se... Você sabe. Ela estivesse
certa?”. Jade riu mais um pouco, o que só o deixou ainda mais nervoso.
“Bem, seria. Muito louco. Muito
louco mesmo, porque nós somos ótimos amigos. E porque você é o meu primeiro
amigo homem, e me provou que dá sim para ter uma amizade sem toda aquela tensão
e intenção romântica”. Aquilo desanimou Rodrigo, total. Com todo seu
nervosismo, ela acabou entendendo aquilo como uma suposição, e não uma
proposta. “E seria mais louco ainda... Porque você não ouviu o resto da
história”. O resto da história não importava muito, ele pensou, mas se forçou a
olhar para ela interessado, de tão entusiasmada sua voz estava.
“Eu falei essas coisas pra ela e
tal, sabe? Que eu te adoro, mas que não estamos juntos. A menina quase deu
pulinhos de alegria! E perguntou se, já que eu garantia que a gente não tinha
nada, estava tudo bem ela dar em cima de você? Porque você é realmente uma
gracinha, e ela esperava mesmo que fosse para o reg de Hugo”. Rodrigo estava
espantado. Que menina... direta.
“Então, você vai para esse reg,
nem que eu tenha que te rebocar”, Jade continuou, sem prestar muita atenção na
boca aberta do amigo. “A garota é bonita, tem o corpo bonito, foi
supersimpática comigo, e ainda é veterana. Sabe como os caras vão ficar quando
souberem que você pegou uma veterana? Uma veterana bonita, que podia muito bem
conseguir caras mais velhos? Fora que ela tem milhões de amigos gatos, então
ainda deve sobrar algum para mim, o que pode ficar ainda bem melhor se for
Paulo, do quarto semestre. Ele é realmente
um gato, sabe? E, para completar o pacote, ela me pediu permissão para dar em
cima de você. Ah, meu amigo, você está feito. Se ela pediu isso, é porque então vai se jogar mesmo. E você só vai
precisar ficar lá, sorrindo e falando algumas coisinhas para manter o assunto.
E então, voilá!”. Jade falou tudo
isso tão animada, gesticulando e sorrindo, que a única opção de Rodrigo foi, no
fim, murmurar “Hum... Tá certo”.
Os dois voltaram a estudar,
porque, como Rodrigo dissera, o tempo estava curto, e precisavam adiantar.
Estudaram como máquinas até terminarem os capítulos da prova e, num
acontecimento inédito, Rodrigo não pôde esperar mais um pouco, nem ficou
jogando um pouquinho de conversa fora, mesmo sabendo que o ônibus para sua casa
só passaria em vinte minutos, e não, ele não estava com o carro naquele dia.
Por mais que agisse de uma forma um tanto quanto estranha, Jade não reparou.
Jade, droga, nunca reparava nada. Estava sempre distraída, pensando sobre
coisas que não tinha, situações que não vivia e pessoas que nem sabiam sobre
sua existência. Merda. Ela que fosse se danar, com sua distração o tempo todo.
Se ela ao menos lembrasse...
As horas passaram, o dia acabou,
as provas chegaram, e durante esses dias Rodrigo teve tudo que precisava: as
desculpas para não ter de passar horas e horas conversando com Jade, pois
estavam fazendo prova. Não precisou almoçar em sua casa na terça, nem estudar
com ela até tarde nos outros dias da semana. E, para completar, fez questão de
não pegar o carro, para não ter de ser educado e oferecer-lhe carona naqueles
dias. Por um motivo que preferia ignorar, estava evitando a presença de Jade ao
máximo, pelo menos até que chegasse o sábado, e a encontrasse na casa do tal
Hugo.
Ele também havia procurado Júlia
no Facebook – bonita, simpática, tinha cara de divertida e inteligente, mas,
definitivamente, não fazia o seu tipo – e, para tomar alguma atitude, a
adicionou como amiga. Não demorou muito para que ela aceitasse, e ainda
começasse uma conversa animada pelo chat – superficial, mas certamente animada,
pela quantidade de pontos de exclamação, interrogação e emoticons que ela usava
–, que durou até quase meia noite, quando ele já estava com sono demais para
ainda pensar em formas interessantes de responder perguntas como “e você vai
precisar de alguma monitoria para o próximo semestre?”, por que como ele ia
saber? Ainda estava fazendo as provas do primeiro!
O sábado chegou mais rápido do
que Rodrigo esperava. Ele ainda estava evitando Jade, mas ela fazia tanta
falta! Só que, para seu desânimo, ela não parecia notar, ou assim ele pensava.
Estava refletindo sobre isso, enquanto escolhia a roupa que usaria mais tarde. Foi
interrompido da missão, porém, por uma mensagem no celular. “Digo, você vai que
horas?”, ela mandou. “E tem alguma coisa errada acontecendo? Porque, não sei,
você tava meio estranho essa semana... Não quis te atrapalhar. Mas bem, você
sabe que se eu tiver feito alguma coisa, pode falar comigo, né? Você é o meu
melhor amigo na faculdade, não quero estragar isso. Enfim, te vejo mais tarde,
beijo!”. Então, melhor amigo, ela
percebeu.
Ele respondeu logo, dizendo que,
não, ela não tinha feito nada de errado, ele só estava ocupado e apressado
demais. E que, não precisava se preocupar – porque ele sabia que aquela
pergunta na verdade era apenas para conferir se ele ia mesmo ao reg –, pois ele
estaria lá, e ligaria para ela assim que saísse de casa. Desligou, e já sabia
exatamente que roupa vestir. O almoço e a tarde passaram tão rápido que, em um
piscar de olhos, ele já estava com o celular em mãos novamente, ligando para
Jade. Ela atendeu, falando de um lugar já bem barulhento. Disse que tinha
acabado de chegar, e que ele adiantasse, porque ela não queria ficar muito
tempo sozinha. Sim, ele adiantaria. Mas não, é claro que ela não ficaria muito
tempo sozinha.
O fato é que, naquele primeiro
semestre – em que, vale ressaltar, ele havia saído mais que no resto da sua
vida – Rodrigo aprendeu um pouco – ou muito, se considerasse a sua própria
experiência – sobre o que algumas pessoas chamavam de charme, outras de
“borogodó”. Jade não era, com certeza, a garota mais bonita que já tinha visto,
nem a mais bonita do curso, nem a mais inteligente ou mais qualquer coisa que
fosse. Não era loira, não tinha olhos azuis, não era rica. Mas, por algum fato
que ele desconhecia, ela parecia ter um ímã natural, que atraía as pessoas ao
seu redor. Nunca lhe faltavam caras para conversar ou paquerar, mesmo nos
momentos em que nem ela mesma percebia. É, seus cabelos castanhos, olhos
castanhos, corpo normal, roupas normais, conversa normal... Bem, tudo aquilo
parecia ter algo de especial e invisível, e fazia bastante sucesso.
Pensar sobre aquilo não era, de
forma alguma, agradável. Rodrigo acelerou o carro, torcendo para que não
encontrasse sinais vermelhos ou engarrafamento no caminho. Sua torcida não foi
suficiente e, mesmo em um sábado, ele só conseguiu chegar ao endereço de Hugo –
afinal, quem era Hugo? Era tão estranho aparecer assim, na casa de pessoas
desconhecidas – meia hora depois. Estacionou o carro na rua em que ficava o
prédio, e foi andando até a portaria. De lá, já podia ver a área da piscina,
uns dois andares acima, onde o reg acontecia. Júlia estava lá, encostada ao
guarda-corpo, conversando com uma amiga intercambista. Ela não demorou de
vê-lo, e logo abriu um largo sorriso, levantando sua garrafa azul como
cumprimento. Ele sorriu de forma tímida, informou ao porteiro aonde iria,
entrou no prédio e esperou pelo elevador.
Quando a porta se abriu, ela já
estava lá, com uma saia justa, um batom vermelho e duas garrafas em mãos.
Deu-lhe um beijo no rosto, disse “oi” da maneira mais simpática que existia e
entregou-lhe uma das garrafas. “Então, seja bem vindo!”. Rodrigo sorriu, ainda
um pouco sem graça, agradeceu, e deu logo um bom gole do que quer que fosse
aquilo. Que situação constrangedora!, pensou. “Sua amiga é uma fofa, ela nada
lá na minha academia!”, ela disse, sem ter muita ideia de como puxar um assunto
com ele, que estava visivelmente vermelho. “Ah, ela é mesmo”, ele respondeu,
olhando para os próprios pés. “Bem, eu estava pensando em apresentar algum
amigo meu a ela, que tal? Não é bom deixar as visitas sozinhas durante a festa,
eu seria uma grande mal-educada!”, ela continuou, dando um tapinha de leve em
seu ombro, seguido de uma risada. Rodrigo não entendeu o que queria dizer, e
torcia para que aquele elevador abrisse logo as portas. Por que demorava tanto?
Será que havia quebrado? Ah não, por favor... Tudo aquilo tinha sido uma
péssima ideia.
“Ah, você não sabe”, ela falou,
ainda rindo. “Bem, eu sou a irmã do Hugo. Então, digamos... Sou meio que
anfitriã também. Não quero te roubar da sua amiga e deixá-la sozinha a festa
inteira, entende?”. É, ela estava sendo bem direta, bem prática. Aquilo era
meio assustador. Finalmente, as portas se abriram, e ele se deparou, mais uma
vez, com dezenas de jovens reunidos, ouvindo uma música que não julgava muito
boa, bebendo coisas que na maioria das vezes nem gostavam, beijando gente que
às vezes nem conheciam. Dava para entender porque ele gostava de ficar em casa,
a não ser que estivesse ali se divertindo com sua, ops, melhor amiga. Isso aí.
Mas agora, ele respirou fundo e tentou colocar aquilo na cabeça de uma vez, ele
ia se divertir com outra pessoa.
Júlia lhe puxou – pela mão, já?!
– até o lugar em que estava antes de ele chegar, e apresentou a amiga
intercambista como Jessie, a escocesa. Conversaram sobre alguns assuntos ainda superficiais,
até que Jade apareceu e perguntou se, por favor, podia tirá-lo de lá só um
pouquinho? Júlia sorriu, sabendo que ser legal com ela era o melhor a fazer. E
então os dois se afastaram, andando em direção ao hall em que ficavam os
banheiros. Jade não parecia lá muito animada.
“Por que você demorou tanto? E
por que nem veio falar comigo?”, ela perguntou, ainda cabisbaixa. “Eu peguei
engarrafamento. E ela me interceptou no elevador, sabia?”, Rodrigo respondeu,
tentando olhar em seus olhos. Por mais que ela parecesse estar chateada, ele
estava feliz por aquelas perguntas. Era como se, de alguma forma, Jade estivesse
com ciúmes? “Desculpe”, ela murmurou. “Eu não tenho direito de ficar falando
assim com você”, e pegou a garrafa que estava na mão dele para dar uns bons
goles. “Então, por que está assim?”, foi ele quem perguntou, levantando com a
mão o queixo dela. “Não é nada demais”, ela murmurou, ainda querendo olhar para
os próprios pés.
“Você sabe que pode me contar”.
Jade levantou o rosto, olhando bem nos olhos do amigo. É, podia contar qualquer
coisa mesmo. “Não me ache ridícula”, ela começou, “e olhe discretamente para
aquele balcão onde o povo pega as bebidas”. Rodrigo se virou lentamente –
depois de meses ouvindo “não vire tão rápido! Ele vai perceber, droga!”, ele
havia aprendido toda a técnica de observar sem ser visto – e voltou a se virar
para Jade. “Viu aquele cara ficando com Camila Rocha? Pois é. Ele é ‘Paulo do
quarto semestre’. Ele nem reparou que eu existo”.
Rodrigo sentiu um pouco de vontade
de rir, mas não faria isso. “E você está assim só porque um cara que você acha
bonito está com outra garota?”, ele perguntou, tentando soar o máximo
compreensível que conseguia. “É claro que não”, ela falou, se fazendo de forte.
“E também não é porque ele não
percebeu que eu existo. É porque ninguém
percebeu. Eu sou tão comum, sabe?”, ela disse, a voz fraquinha, quase sumindo.
Rodrigo abriu a boca para falar que não, é claro que não, porque ela era tão
especial e sempre chamava a atenção de tanta gente, mas não conseguiu. Não saiu
som algum e, mesmo que saísse, ela já estava novamente falando.
“Quer dizer, olhe em volta. Todos
os caras bonitos e interessantes estão acompanhados. E eu? Eu estou
pateticamente sozinha”. Não era possível. Jade, sempre tão forte e engraçada,
cheia de autoestima, ia chorar por causa daquilo? “E eu?”, Rodrigo apontou para
si próprio, fazendo cara de ofendido. “Você não está pateticamente sozinho como
eu”, ela murmurou, já passando para o estágio da irritação. “Não”, Rodrigo disse,
chamando sua atenção. “Eu quis dizer... ‘E eu?’ Não sou um dos caras bonitos e
interessantes?”. Jade virou os olhos e balançou as mãos. “Você não conta, é meu
melhor amigo”. “Ei, Jade”, ele chamou, com aquele jeito único que ela tinha
aprendido a adorar. “Você realmente não se lembra do que aconteceu no trote?”.
“É claro que não”, ela respondeu, como se aquilo fosse óbvio, oras. “Eu estava
ridiculamente bêbada, você sabe disso”.
Não é que Jade normalmente não
bebesse, mas ela se controlava. Quando percebia que estava alegrinha, já era
hora de parar. E, sim, ela gostava. E, sim, as amigas dela ficavam bêbadas às
vezes, e não é que ela não tivesse um pouco de vontade, mas morria de medo das
consequências. O exemplo que tinha tido na família, sua tia Safira, a caçula
dos irmãos de sua mãe, a mais espontânea, animada e festeira de todos, não
tinha sido dos melhores. Aos dezessete anos, Safira já estava grávida e, até
hoje, se via às voltas para criar Rubi, atualmente com dezesseis. E, pelo andar
da carruagem, com Rubi saindo/bebendo/namorando tanto quanto as fotos do
Instagram eram capazes de mostrar, logo surgiria uma bebezinha Quartzo por aí –
para seguir a estranha tradição da família de colocar nomes de pedras preciosas
nas meninas. Jade até gostava do seu nome, do de sua mãe (Ágatha), do da tia e
da prima. Mas, sinceramente, se continuassem com aquilo, ia começar a ficar bem
estranho.
O fato é que, com aquele seu
costume de beber tão pequeno, o dia do trote foi realmente uma exceção em sua
vida. Não, ela definitivamente não estava preparada para aquele teor alcóolico
e, no dia seguinte, acordou com uma ressaca tão forte que não se lembrava de
absolutamente nada. Até tinha a impressão de ter esquecido algo muito
importante, mas aquilo passou com o tempo. E agora, já no final do semestre,
por que Rodrigo vinha perguntar sobre isso?
“Você me fez prometer que ia
esquecer, mas não dá”, ele disse, apoiando os cotovelos sobre os joelhos e
olhando profundamente nos olhos castanhos da menina à sua frente. “Do que você
está falando?”, ela perguntou, sem fazer a mínima ideia do assunto. “De você. E
do que você fez no dia do trote”. “Tá, e o que eu fiz no dia do trote?”, ela
estava realmente curiosa.
“Humm... Você me beijou”.
Silêncio, muito silêncio. Aquele silêncio bastante constrangedor, em que nenhum
dos dois conseguia encarar o outro. Olhavam para os pés, para o céu, para a
parede, para as pessoas ao redor. “Eu... te beijei?”, ela repetiu, meio
incrédula. Muito incrédula, para falar a verdade. “Aham”, ele murmurou. “Tá, e
como foi isso?”. Mais silêncio. Rodrigo pigarreou, tentando escolher as
melhores palavras.
“A gente tava conversando
qualquer besteira lá, aí do nada você parou e ficou me encarando. E aí disse
‘caramba, como assim eu nunca reparei que estava caidinha por você?’ e me
beijou. E, assim... Foi muito legal. Muito bom. Mesmo”. Jade estava
boquiaberta. Primeiro, que frase ridícula! Segundo, como assim ela esteve
caidinha por seu melhor amigo? E terceiro e mais importante, como diabos ela
tinha esquecido aquilo?! “Ai meu Deus, eu não consigo lembrar nada disso”, ela
disse, colocando a mão sobre a cabeça. “É, no dia seguinte eu percebi que você
tinha realmente esquecido tudo. Porque eu até pensei que, quem sabe, mesmo
depois de me pedir desculpa, e de me fazer prometer que ia esquecer, você não
repensasse? Mas não aconteceu, né...”, ele praticamente sussurrou, de tão baixa
que sua voz estava.
“Eu sinto muito”, ela disse,
segurando suas mãos. Meu Deus, aquela era a situação mais esquisita da sua vida
inteira. De repente, ela descobria que tinha beijado seu melhor amigo? Isso não
era normal, definitivamente não. “É só que... Isso tudo é tão esquisito!”. E
era mesmo. Era impossível dizer qual dos dois estava mais confuso ou
constrangido. “Desculpe”, ele disse, sentindo-se realmente culpado, mesmo que
racionalmente soubesse que não tinha culpa nenhuma sobre aquela situação. “O
quê? Não, é claro que você não precisa... Eu te beijo, eu esqueço, e a culpa é
sua?!”, ela teve vontade de gritar, mas se conteve.
“Não, Jade. A culpa é minha
porque, merda, eu não te esqueci. Eu não fiquei com mais ninguém depois que
você me beijou, e também não tive coragem de ir lá e falar com você! Eu
continuei fazendo tudo do mesmo jeito, como se estivesse tudo igual entre a
gente. Mas que droga, não está! E eu fui covarde! Eu não te disse logo que não
queria nada com essa Júlia, e eu te ajudei a escolher um biquíni para ir à
praia com outro cara! A culpa é toda minha, porque fui um idiota, e não corri
atrás do que queria. Fiquei nessa de ‘deixar acontecer naturalmente’, ver o que
o tempo fazia. Mas o que o tempo fez? Absolutamente nada. Eu só estou aqui,
ouvindo você quase chorar por causa de um bostinha que nem sabe da sua
existência. Enquanto eu passei todo esse tempo feito um besta, andando atrás de
você, e nunca fiz você me enxergar como uma opção. A culpa é toda minha, por
pura e simples covardia”, ele desabafou.
“Ai, droga”, Jade soltou. “Nunca
pensei que fosse ouvir nada disso. Nunca pensei nem que eu faria isso na vida,
e acabo de descobrir que eu já fiz!”, ela riu, nervosa. “Mas então, não tem
porque você pensar assim, não mesmo. Eu é que sou uma lesada distraída, que não
percebi nada!”. Por mais que gostasse dela, Rodrigo também não podia negar
aquilo, então sorriu. “Isso tudo é muito estranho para mim, sabe?”, ela disse.
“E não, eu não vou dizer nada clichê como ‘percebi que estou apaixonada por
você’, porque sei lá, acredito que essas coisas só acontecem com o tempo”, Jade
falou, se aproximando mais dele. “Mas, poxa, eu gosto muito de você, muito
mesmo. Você é o meu melhor amigo, sabe disso. E calma, que também não vou dizer
aquele outro clichê do ‘não quero estragar nossa amizade’. Eu acredito em
muitas coisas, sabe? E uma das coisas que acredito que fazem um relacionamento
dar certo é a amizade entre as pessoas”.
Rodrigo não entendia muito bem os
caminhos daquela conversa, mas prestava atenção nos movimentos inseguros de
Jade. Ela já havia segurado e soltado sua mão umas duas ou três vezes, mas
mesmo assim continuava se aproximando de seu corpo. E, sobretudo, continuava
encarando seus olhos. “Então, assim... Eu sei que a nossa amizade não vai
voltar ao normal depois disso. Então, talvez, a gente não pudesse passar para o
próximo nível? Devagarzinho, e do jeito certo? Sei lá, tentar?”, ela perguntou,
ainda mais insegura. Já estava exatamente em frente a Rodrigo, os rostos dos
dois quase se tocando. “Porque, de verdade, eu acho você um cara bonito e
interessante!”, ela acrescentou depressa, fazendo-o rir.
Ele já tinha uma de suas mãos
atrás de sua nuca, acariciando seus cabelos castanhos e especialmente comuns.
“Ei, Jade”, chamou, quando ela já estava quase de olhos fechados. “Você só
precisa me prometer uma coisa”, ele pediu. Os olhos dela, também castanhos, mas
tão diferentes do comum, com aquele formato amendoado e o brilho forte, se
alarmaram. “Por favor, não me peça para prometer que, se não der certo, tudo
vai voltar ao normal. Porque a gente sabe que não é assim, que essas coisas são
arriscadas...”, ela quase implorou. “Não, não é nada disso”, ele riu. “Eu só
quero que você me prometa que, aconteça o que acontecer, dessa vez você não vai
esquecer”. Jade sorriu também. “Ah, não. Eu vou lembrar. Com certeza, vou
lembrar. Mas você pode, por favor, adiantar logo isso? Ou quer que eu tome a
iniciativa de novo?”. Rodrigo não falou mais nada, apenas puxou seu rosto para
mais perto e, com alguns meses de atraso, continuou o beijo que tanto havia
lembrado.
Comentários
Postar um comentário