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A vidente


   Ruby nem percebeu que já estava chegando à sua estação. Passou todo o tempo viajando nos próprios pensamentos, refletindo sobre o que a cartomante dissera. Sim, ela havia ido a uma cartomante, mesmo sendo uma jornalista bem sucedida, que teoricamente só acredita em fatos. E, também, mesmo sendo uma mulher independente, no auge dos seus 33 anos, com uma beleza de arrasar e a auto-estima lá em cima. Nada disso, porém, era maior do que a sua curiosidade para saber, depois de ouvir tantas esperanças milagrosas de suas colegas, o que a tal mulher lhe diria como previsão. Nem a sua sempre presente consciência foi capaz, alertando-lhe a todo momento, de impedi-la de gastar uma fortuna para ouvir coisas que não acreditaria.
   O fato é que, lutando até contra os próprios credos, Ruby pegou a linha 2, saltou na primeira estação, passou para a linha 6, e esperou mais uns 20 minutos até que pudesse sair do metrô e procurar a rua do endereço. Encontrou o prédio com facilidade, e não demorou muito para ser atendida na sala cheia de cores, lenços, velas e incensos. 
   Madame Watt, como ela preferia ser chamada, jogou os búzios e tirou as cartas. Previu sucesso no trabalho, que Ruby não tomou como erro, mas também não era lá um acerto muito difícil. Falou sobre amores passados, sobre as boas lembranças que carregava, mas as tristezas que ainda sentia. Mais outra conclusão não muito difícil, visto que uma mulher de 33 anos dificilmente estaria ali se não tivesse amores e tristezas para analisar. E foi logo após isso, quando Madame Watt arregalou os olhos e perdeu a voz, para depois dizer "sinto que você conheceu um rapaz há pouco tempo... e que ele te fará feliz!" que Ruby começou toda a sua reflexão. 
   É verdade, ela havia conhecido um rapaz há pouco tempo. Para ser mais exata, no fim de semana anterior, numa balada no centro. Não parecia nada demais, até porque isso quase sempre acontecia quando ela saía com as amigas. E ela saía muito. E não, ela nem sabia que o conheceria quando marcou a "consulta". Para falar a verdade, ele até parecia bem interessante, e as conversas entre os dois estavam se tornando mais frequentes e animadas.
   Onde estava o problema? Ela não queria que homem nenhum a fizesse feliz. Queria ficar sozinha? Não, não. Simplesmente não queria passar aquela responsabilidade para outrem. Era ela quem tinha que se fazer feliz. Ela tinha de ser feliz sozinha, para que pudesse compartilhar essa felicidade com os outros. A conta era bem simples: se ela estivesse negativa, não adiantava tentar uma soma. Qualquer relação seria, no fim, uma subtração. E foi aí, percebendo que o grande erro de Madame Watt não foi a falta de exatidão, mas não reconhecer que Ruby já era feliz consigo mesma - não sempre, mas quase isso - que ela reparou mais ao seu redor.
   Reparou no céu azul de brigadeiro, no sol que dava vontade de sorrir, nas crianças que não paravam de brincar. E aí, a felicidade de Ruby, sempre presente, começou a transbordar.

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