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O nosso amor se transformou em "Bom Dia"


   Luís e Ana se conheceram em uma viagem. Ela era de Pernambuco, morava em Salvador para fazer faculdade há menos de um ano, e tinha viajado com as amigas para comemorar o Ano Novo na Península de Maraú. Ele era de São Paulo, recém-formado, encontrou uma oportunidade de emprego e não hesitou em se mudar: foi para Bahia, achando que ia “desacelerar”. Ouviu falar de umas praias bonitas em Barra Grande, arrumou as malas e foi passar o reveillón por lá.
   Os dois se viram pela primeira vez na travessia de lancha. Para falar a verdade, ela nem reparou. Mas Luís, que era muito atento, bem que olhou. Eles ainda ficaram em pousadas bem próximas, mas nada de se encontrar. Foi na festa da virada do ano, quando alguém inconveniente estourou um champanhe sem olhar, e a rolha acertou em cheio Ana, que Luís estava pronto para ajudar. Ela sorriu. Ele sorriu de volta. E então era primeiro de janeiro, e aqueles sorrisos se transformaram em abraços de “feliz ano novo!”. E era uma festa, então, ele perguntou o nome dela, que se aproximou mais dele para responder, e perguntou de volta. E eram férias, então, aquela conversa se transformou num beijo descompromissado, que ao mesmo tempo dizia “esse ano promete”. E ele prometeu que no dia seguinte a acompanharia à praia.
   Ela não esperava aquilo, mas ele realmente a acompanhou. E a praia foi ainda melhor que a festa, e aí ela descobriu que ele também estava morando em Salvador, e os dois combinaram de, quem sabe, se ver quando voltassem. Os dois sabiam. Ela não precisou nem pisar os pés em terras soteropolitanas para receber um convite dele para sair e, tudo bem, nem havia tantos lugares para ir, mas a saída foi ótima, sim. Na verdade, foi tão boa que eles saíram de novo.
   Ele se encantou pelo sotaque pernambucano, e parou de chamar de “baiano” quem não vinha da Bahia, ou quem fazia o que ele não gostava e achava que “era coisa de nordestino”, e até foi largando aquela mania de colocar artigo antes do nome de cada pessoa. Ela agregou ao seu “vice” umas gírias paulistas, anotou os lugares que queria visitar em São Paulo, conheceu um pouco do seu trabalho e contou as suas histórias de família – que ela não contava a ninguém.
   Eles se aproximaram ainda mais. Andavam de mãos dadas, exibiam anéis de compromisso, passavam mais tempo no apartamento do outro do que no próprio e, para completar, viajaram para conhecer e apresentar as famílias.
   O outro ano virou. Esse ainda melhor, com direito a viagem de casal, fotos e promessas. O valor do aluguel aumentou. Luís chamou Ana para uma conversa. Ela recebeu a mensagem e achou que ele queria terminar. Chorou, pediu ajuda das amigas, preparou um discurso mental. Quando chegou lá, ele era todo sorrisos e autoconfiança. Tinha tido uma ideia genial: ficariam mais juntos, gastariam menos dinheiro e ainda poderiam viajar mais. Ela sorriu aliviada. Não tinha pensado em estar casada, mas também nem era bem assim.
   Ana já tinha mesmo duas gavetas no quarto de Luís. Ela já tinha feito com que ele comprasse os pratos e taças que gostava, e ele adorava o sofá da casa dela. Juntaram os poucos móveis, arrumaram as panelas na cozinha e voilá! Escovas de dente juntinhas. Os primeiros dias eram só alegria.
   Mas é que a metade do guarda-roupa que ele deixou para ela não era suficiente. E a bagunça dela o deixava meio impaciente. Ana tinha que acordar muito cedo para ir estudar. Ela tinha o sono pesado, colocava o despertador no máximo e, mesmo assim, era difícil de levantar. Ele acordava e, com o barulho que ela fazia até sair, não conseguia voltar a dormir. Ele gostava de deitar mais tarde, e o som da televisão atrapalhava Ana para estudar. Ele até sabia cozinhar – mas enchia tudo de gordura e ela começou a engordar.
   A faculdade começou a dificultar. E agora Ana tinha estágio, e provas, e tinha que ir ao supermercado e ajudar a limpar a casa pelo menos quatro vezes no mês. Ela acordava cedo, levantava com cara de cansada e só voltava bem tarde, cada dia com mais cara de morta. Ele foi se acostumando com a música do despertador – e também com às vezes que ela não conseguia levantar e simplesmente perdia as primeiras aulas – e só dizia “bom dia, meu amor” antes de ela finalmente pegar a bolsa e sair.
   Eles começaram a discutir. Discutiam porque as roupas dela não cabiam mais, porque a menstruação atrasou – mas pelo menos depois chegou –, porque ele acabou com o iogurte dela e se esqueceu de repor. Discutiam porque, nos fins de semana, ela precisava estudar. Discutiam porque nas sextas os amigos dele queriam sair, e ela não queria deixar. Eles nunca dormiam brigados. Também nunca acordavam apaixonados.
   Ele começou a pegar mais trabalhos, chegava ainda mais tarde em casa, ela nem reparava. Nas raras vezes em que jantavam juntos, ele falava dos seus projetos, enquanto ela tentava manter os olhos abertos e não cochilar sobre o prato. Um dia, ela não conseguiu, e dormiu. Ele a olhou com carinho, mas com pesar. Luís carregou Ana no colo, deixou-a na cama e desligou o despertador.
   No dia seguinte, ela acordou mais tarde, um pouquinho mais disposta. Na cama, no lado de Luís, havia uma caixa de lembranças e um bilhete:

   “Desculpe, o nosso amor se transformou em ‘Bom Dia’. E eu não consigo mais te acordar”.

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