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Mostrando postagens de junho, 2015

Ainda dá tempo de dar meia volta

   Acho que você andou ouvindo um pouco sobre as minhas qualidades. Acho que talvez tenha se iludido com os elogios, talvez tenha exagerado na construção da minha imagem. Vamos ao choque de realidade, então.     Eu falo demais. E sim, isso pode até parecer encantador agora, quando você me vê gesticular, sorrir e arregalar os olhos cheios de brilho. Mas daqui a um tempo, quando você estiver do meu lado me ouvindo contar para um estranho a mesma história que você já ouviu centenas de vezes, vai virar os olhos e pensar em como é que aquilo um dia teve graça, ou como minha gesticulação excessiva é coisa de quem não sabe se controlar, ou como a minha voz é fanha e irritante.    Sim, você pode pensar que essa minha demora para perceber as coisas é fofa, mas te garanto que em pouco tempo será lerdeza, burrice, demência. Ou você pode achar que a minha simplicidade para ficar em casa é algo aconchegante, que te deixa à vontade. Não te dou muitos meses para dizer que sou descuidada e sem gr

Ampulheta

Esse barulho ritmado que me aperta o coração. Essa espera que me prende a respiração. Essa ansiedade que me trava os dedos. Tic tac. Essa falta que me cerra os dentes. Esse silêncio que me arranca os cabelos, essa angústia que me rói as unhas, essa loucura que me rasga as roupas. Tic tac. Essa tristeza que me dói inteira, essa inquietação que me perturba a mente, essa incerteza que me engole aos poucos. Tic tac. Esse fim que nunca deixa de ser meio, essa emoção que nunca grita, essa tensão calada e mordida. Tic tac. Esse transtorno problemático, essa obsessão incontrolável, essa compulsão alucinógena. Tic tac. Essa agonia de viver de olhos vendados, sem saber ao certo quando, onde ou por quê. Tic tac. O relógio não para de rodar. Tic tac. Convulsões involuntárias, gritarias desmedidas, olhos vidrados. Tic tac. Mas a ampulheta. Tic tac. Vai parar de funcionar.

Metalinguagem por felicidade

       Andava a pensar, pensar e pensar. Refletia sobre a vida, as lembranças, os laços. Sentia tudo aquilo - a vibração da cidade, o burburinho das expectativas, os murmúrios das conversas sorrateiras - eletrizar sua pele, arrepiar seus poros, correr por seu sangue e movimentar seus dedos. Sentia a necessidade da caneta, a precisão do caderno, o ritmo da ponta a tocar o papel e soltá-lo para passar a escrever outra palavra. Tudo aquilo borbulhava em suas veias, e sua cabeça girava feito louca, na busca de um bom assunto, um sentimento profundo e dramático. Estava tudo na ponta da língua, a técnica - muito mais sentimental que gramatical - continuava lá, mas lhe faltava o principal: o sofrimento. Simplesmente não havia porque sofrer. Ela esbanjava seu sorriso por aí, prova viva e invariável de que sua capacidade de escrita andava, no mínimo, ociosa. Mas, se não havia porque sofrer, não haveria, infelizmente, sobre o que escrever. Não com veracidade, profundidade e emoção. Não have

Janela dos sonhos

   Queria livrar-me do tédio que é não ter o que dizer, não ter a quem dizer. Queria que você - esse você meio sem forma definida, metade lembrança, metade imaginação - estivesse aqui para me ouvir, contestar e abraçar.    Você me visitou em sonhos recentes, e fico imaginando se, à noite, também escapo inconsciente para os seus. Você estava mais livre nos sonhos, assim como eu sou mais livre nas cenas que a minha própria cabeça cria. As cenas que não tivemos tempo de interpretar. Mas será que não tivemos mesmo? Acho que, na verdade, fomos nós que não demos tempo ao tempo.    As coisas são assim, acontecem, acabam. Às vezes acontecem de novo, outras vezes não. O tempo não volta, mas ainda está aí, esperando que façam dele algo útil. Só é preciso coragem, vontade. Sua imagem vai reaparecer zilhões de vezes até ser substituída, eu me conformo. Talvez outra aparecerá no lugar dela, talvez você mesmo a atualize por uma mais recente e instigadora. Talvez você nem cogite mais isso, e a m

Faz parte do ofício

   São muitos dias para poucas palavras, são poucos dias para muitos sentimentos, são sentimentos demais para tão pouco papel escrito. Mas, se o peso desse papel ainda consegue ser maior do que a leveza desses tais sentimentos, então, talvez seja compreensível.     Onde estão o sofrimento, a saudade, a catarse? Foram todos embora há muito tempo. E, mesmo assim, o que os mantinha nos textos? A falta de outros melhores para substituí-los. O que os mantinha na vida? Absolutamente nada. E talvez, até quando nem eles conseguiam mais permanecer, e a melancolia ainda brotava das palavras, então era a dor de outrem se manifestando pela escrita solitária.     É parte do ofício, eu sei. Sentir o que não é nosso, sofrer pelo amor alheio que se foi, chorar pela partida que não presenciamos, sorrir com a caixa de chocolates que não ganhamos. E até quando não conhecemos as personagens, criamo-nas para possibilitar o bom texto. Cultivamos a emoção, e no fim a história passa até a ser real - dent