Quando eu era pequena
as pessoas costumavam
dizer que
se um menino te
pirraçava
ele gostava de você
E não importava muito
Se ele te beliscava
Se ele puxava suas
marias-chiquinhas
Se desmontava suas
construções de lego
Ou se te perturbava
Tanto
Tanto
Até você chorar
Ele gostava de você
Era isso que costumavam
dizer
Para meninas de cinco
anos
Que ainda nem deveriam
Sonhar com esse tipo
de amor
Meninas de seis anos
Não deveriam conhecer
Paixões avassaladoras
Relacionamentos
abusivos
Chantagens emocionais
Brigas de casais
Violência
Nenhuma mulher devia
Mas meninas tão
novinhas
Não podiam passar por
isso
Meninas de seis anos
Não deviam usar sutiã
Não precisam
(E alguma de nós precisa?)
Não têm porquê
E mesmo assim
Por que compramos?
E aquela menina de
seis anos
Se achando tão adulta
Com seu sutiã
combinando
Uma peça de algodão
Tão bonitinha e
desnecessária
Como tantos produtos
que usamos
Aquilo estava
incomodando
A menina de seis anos
Sem aguentar mais
Tanto incômodo
Tanto desconforto
Tanto aperto
Tão sem necessidade
Ela só queria brincar
em paz
Ela foi ao banheiro
Para se livrar do
sufoco
Daquela brincadeira de
ser adulta
Antes da hora
E antes que pudesse
fechar a porta
Um menino de dez anos
Entrou e fechou
Tire a roupa.
Ele falou
Não vou.
Ela respondeu
Ele mandou novamente
E mais uma vez
Ela disse que não iria
Com a coragem de quem
não conhecia
Aquele tipo de ameaça
Abra a porta.
Ela ordenou
Do alto dos seus seis
anos
Enquanto o menino de
dez
Tão maior
Ainda esperava
Para ver o que ela usava
Abra a porta.
Saia daqui.
Me deixe sair.
E ele não queria
Lhe liberar
Nem ele entendia
Ao certo
O que acontecia
Mas queria
Por tudo
Ver o que ela vestia
Abra a porta.
Ela repetiu
E não conseguiu
Sair dali
Não sozinha
Mas sabia
No auge dos seus seis
anos
Que havia uma força
Que havia uma luz
Que havia uma chance
Chamada VOZ
E a menina de seis
anos
Com a sua voz aguda
Gritou
Gritou tão alto
Mandando ele sair
Como se conseguisse
tirá-lo dali
Que alguém de longe
Abriu a porta
E finalmente
Levou-a para fora
Ela saiu vestida
Intacta
Sã e salva
E calada
Naquela noite
Sentada no colo da mãe
Ela chorou
Chorou tanto
Chorou até conseguir
contar
Mas tudo que ela conseguiu
dizer
Foi que ele disse lhe
amar
Meninas de seis anos
Não deveriam
Conhecer esse tipo de “amor”
Como meninas
E mulheres
De qualquer idade
Não deveriam
Experimentar
Esse tipo de dor
Ou dores parecidas
E piores
E físicas
Aquela menina de seis
anos
Conseguiu esquecer
E bloqueou essa
memória
Talvez para não sofrer?
E só quando essa
menina
Tinha uns vinte anos
Ela lembrou
Do que aconteceu
E do que – aleluia –
Não aconteceu
Naquele banheiro
Só aí ela realmente
entendeu
A gravidade do que
Podia ter acontecido
E agradeceu à sua
memória esperta
Por ter lhe escondido
Só aí ela contou à sua
mãe
A real história
Daquela noite de tanto
choro
E só então descobriu
Sobre aquele “amor”
Mal aprendido
Meninas de seis anos
Não deviam passar por
isso
Nem meninas de vinte
Nem meninas de vinte e
três
Que, pela primeira vez
Depois de dezessete
anos
Choram enquanto contam
Sobre o que podia ter
sido
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