Pular para o conteúdo principal

Eu sinto falta da minha paz



   Sair da casa dos pais por um tempo é perceber que uma casa não funciona tão bem quanto você pensava. As coisas não se resolvem sozinhas. Não sujar não significa não ter que limpar. Se não sair para fazer mercado, a comida não aparece na geladeira. Sair da casa dos pais também é se dar conta dos luxos que se tem. Do quanto sua vida é confortável e você nem sabe. Ter comida gostosa, quente e prontinha na hora do almoço é uma delícia. Colocar a roupa no cesto de roupa suja e encontrar ela levada, passada e dobrada parece até sobrenatural. Não precisar fazer mercado - ou, quando se dispuser a fazer, ir e voltar de carro - é uma mágica.
   Sair da casa dos pais é ser jogado no mundo real, e ter que dar conta, porque não tem alguém para dar conta por você. Mas também é perceber que você é capaz de fazer isso. É lavar os pratos na hora que quiser. É não precisar dizer que horas vai, com quem vai, para onde vai. É não receber ligação perguntando que horas volta. É não precisar ficar pedindo carona. É fazer as coisas do seu jeito, no seu tempo. Sair da casa dos pais é sentir saudade, mas respirar liberdade.
   Voltar para a casa dos pais é tentar se reacostumar com a antiga dinâmica. É tentar se readaptar a essa hierarquia. É voltar a engolir sapos que não mais engolia. É se alimentar melhor, mas ao mesmo tempo ficar ouvindo questionamentos sobre se já comeu. É poder andar de carro, mas sempre se sentir devendo. É ter alguém para buscar nas festas, mas ter um horário limite para voltar. É sentir os cuidados, mas ouvir as cobranças. É achar que já é grandinha demais para algo, mas saber que eles nunca vão enxergar assim.
   Eu sinto falta da minha paz, mas cada escolha é uma renúncia. Aqui eu morro de saudade de lá, e lá eu morria de saudade daqui. Sair da casa dos pais - e depois voltar - é não estar completa em nenhum lugar. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Amor-passarinho

O amor precisa ser livre. Se não for, simplesmente não será amor. O amor precisa ser livre como passarinho. Precisa poder voar. Precisa ter a liberdade de construir outro ninho. O amor precisa ficar porque quer estar. Não adianta muito ficar apenas porque as asas cortadas já não conseguem voar.  O amor precisa ser livre - no início, no meio e no final - para que continue sendo amor, não posse. Precisa ser livre para poder se transformar, sem se prender em amarras. Só o amor livre consegue se transmutar em outras formas de gostar. O amor precisa ser livre, ainda que seja para voarmos para longe dele. É preciso perceber a hora de pousar, mas também a de ir embora. O amor livre é aquele que se alegra com os grandes voos do outro, mesmo que os ventos levem para outros caminhos. Gosto da metáfora do amor-passarinho: dos voos, dos ninhos, da beleza de poder ir, da sinceridade do querer ficar, da independência de conseguir planar sozinho.  Meu amor-passarinho vive d

Bicicleta ou casamento?

    Eu sou indecisão. Sinto muito se não foi assim que você planejou, mas eu simplesmente não planejei. Tudo bem, até que planejei, mas aí achei que o primeiro plano estava ruim, parti para o segundo, e devo ter chegado até o Plano Z, mas, bem, não deu muito certo. Então digamos que não foi planejado e pronto.    Eu tive que pedir opinião a trocentas amigas para me ajudarem a escolher entre o meu vestido preto, soltinho e costas nuas, ou aquele branco tubinho, quando você me convidou para o primeiro jantar com a sua família. E lembra o que eu acabei usando? Isso mesmo, aquela minha saia longa azul com uma blusa bege.    Eu não sabia se aceitava o sorvete de chocolate ou o picolé de amendoim naquele nosso primeiro encontro, e acabei tomando os dois. Eu não sabia se devia te dar a mão ou segurar o catavento que você comprou para mim, e então você mesmo puxou minha mão, com catavento, com suor frio de ansiedade e com uma gota do picolé que estava escorrendo porque eu não tinha

Eu voltarei a escrever

Soube hoje pela manhã que ontem foi dia do escritor. E precisava escrever e, principalmente, precisava vir aqui falar isso, depois desse jejum antiestratégico de alguns meses. Eu não sou uma escritora profissional – não vivo disso e nunca tive qualquer lucro com a escrita – mas emocional. Eu escrevo quando algo me desperta emoções, quando eu quero despertar emoções. E eu parei de escrever porque as emoções que eu podia catalisar – no meio de tanta dor e desespero, no auge da segunda onda da pandemia – não eram boas. Não quero ser um roteador de angústias e sentimentos ruins. A vida tem sido esquisita há um bom tempo: isolada do mundo, das pessoas queridas, dos grandes e bons momentos. Nada acontece aqui dentro. Lá fora, o mundo parece querer acabar. Me divido entre o tédio de não ter o que contar e o medo de assistir, de longe, o que pode acontecer. Parei de escrever. Mas escrever também tem sido a minha válvula de escape há anos. Eu escrevo sobre despedidas, partidas, dores, amores,