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Papo de elevador


Mais um dia cheio. Mais um dia que voltava para casa com dor de cabeça. Mais um dia que não sobrava espaço na agenda. Mais um dia que ia embora depois da luz da sol. Ao mesmo tempo, mais um dia vazio. Quando chegasse em casa e a mãe perguntasse quais as novidades, pela milésima vez diria que nenhuma, estava tudo igual, tudo mais ou menos, nada fora do normal.

Luciana chamou o elevador. Ainda estava no 11º andar, e ela pensou em não esperar. Eram só quatro andares, afinal. Mas estava tão carregada de coisas, a bolsa, a marmita, o casaco, os livros, o notebbok, que preferiu não descer as escadas. Esperou mais um pouquinho, abriu o elevador e entrou. Estava vazio, graças a Deus. Uma conversa de elevador era o que ela menos queria naquele momento. Não saberia o que responder se alguém comentasse pela milionésima vez que o tempo estava doido.

Para o desgosto de Luciana, o elevador parou no segundo andar. Quem chamava o elevador para descer apenas dois andares? Ela suspirou. Podia ser alguém ainda mais cansado do que ela. E, de fato, era. O cara era até bonito e arrumado, mas estava escondido atrás de umas olheiras profundas e uma expressão triste.

- Bom dia.
- Bom dia.

Os dois olharam para frente, esperando apenas mais cinco segundos para saírem daquele cubículo metálico e nunca mais verem um ao outro na vida. Foi na mesma hora que a luz falhou e o elevador parou. Luciana deu um grito, assustada. O rapaz permaneceu como estava, inabalável. A vida parecia ter sido tão dura com ele ultimamente, que nada seria capaz de assustá-lo. O elevador parou. As luzes de emergência se acenderam. Ele não voltou a andar e nem liberou a porta.

- Temos que permanecer calmos - ela falou, já controlando a respiração.
- Eu já estou calmo - ele respondeu, como se nada tivesse acontecido.
- Eu também - ela mentiu.

Acharam que fosse voltar logo, mas não foi o caso. O interfone não funcionava. Apertaram algumas vezes o botão de emergência. Nada acontecia. Gritaram para que alguém tentasse socorrer. Ninguém aparecia. Será que já estava tão tarde a ponto de não haver mais ninguém no prédio? Luci já havia perdido as esperanças e, com isso, até o nervosismo inicial foi embora. Apesar disso, os minutos iniciais foram tensos. Um não olhava no rosto do outro, mas também não havia muitos pontos para onde pudessem desviar o olhar.

- Ei, como é o seu nome? - Luci perguntou, quando o silêncio já parecia tão denso que podia ser sentido no ar.
- Pedro.
- Então, Pedro... É melhor sentar. Acho que a gente vai demorar aqui.

E os dois sentaram, tiraram os sapatos, apoiaram as coisas no chão, esticaram as pernas (na medida do possível). E começaram a conversar. No início, como se ainda estivessem naquele papo de elevador, como se logo logo fossem se libertar daquela prisão claustrofóbica. Mas não aconteceu. E a conversa evoluiu: será que se conheciam de algum lugar? Será que alguma vez na vida já tinham se cruzado? Será que aquele encontro, por algum motivo alheio ao conhecimento, já estava predestinado a acontecer? Será que existia destino?

- Eu não faço ideia. Acho que algumas coisas na vida estão certas para acontecer. Mas que você escolhe o que faz com elas. E isso acaba mudando tudo que acontece depois. - Pedro parecia ter algum tipo de certeza estranha no olhar.
- Você acha que alguma dessas coisas já aconteceu na sua vida? - Luci perguntou, sem ter medo de invadir algum terreno pessoal e revirado.

Um silêncio estranho se instalou por alguns segundos. Pedro repensava se devia ou não falar. Ela era uma desconhecida, e logo eles nunca mais se veriam. Que mal podia ter? Ao mesmo tempo, eles dividiam um espaço de pouquíssimos metros e, se a situação ficasse esquisita, não teriam para onde fugir até que fossem resgatados. E mesmo com tudo isso, aquela menina estranha carregando um monte de bagulhos era a conversa mais profunda, íntima e verdadeira que ele tinha tido nos últimos tempos.

- Eu acho que sim. - Ele suspirou - Eu conheci o amor da minha vida.
- Desculpa dizer - Luci começou, agora um pouco apreensiva - mas você não parece muito animado com isso.
- Não estou. Ela foi embora.
- Embora? Pra sempre?

Ele explicou que não era para sempre, ou pelo menos não necessariamente. Mas era por um tempo suficientemente grande para ele não poder esperar. E não porque ele não estivesse disposto a esperar. Mas os dois concordaram que cada um não poderia ser um peso para o outro. Eles precisavam de liberdade para se encontrar.

- Então você encontrou o amor da sua vida. Mas ela foi embora. Porque é como um passarinho e precisa poder voar.
- Isso. Tipo um passarinho.
- E você já pensou que talvez ela quisesse que você voasse junto com ela?

Mais um daqueles silêncios esquisitos. Não, ele não tinha olhado por aquele ponto de vista. Ele estava concentrado no quão bom tinha sido, em como gostaria que continuasse sendo, na falta que sentia... E não pensou que ainda poderia ser, se ele quisesse voar também. Mas ele não sabia para onde ir, que caminho seguir, quais escolhas queria tomar. Só sabia que não podia tomá-las em função das opções de outra pessoa.

- Sabe, eu estou bem indecisa também. - Luci soltou, quando viu que ele estava perdido nos próprios pensamentos e que não ia responder - Ando procurando umas respostas dentro de mim, uma luz pra seguir... 
- E o que você faz? - Pedro perguntou, apontando para os livros apoiados no chão, ao lado dela.
- Tô deixando a vida me levar, enquanto não descubro o que quero. Vou aproveitando o caminho. 
- Eu queria ser assim. Não sei o que fazer e isso está me atormentando.
- Você ainda pensa em ir atrás dela? - Luci mais uma vez se intrometeu.
- Eu não sei. Acho que não. Pelo menos não nessa situação. 
- Acho que você está certo. A gente precisa primeiro saber o que quer, para depois pensar em envolver outras pessoas.
- Você já envolveu outras pessoas na sua confusão? - Pedro nem terminou a pergunta e Luci já estava rindo, até quase ficar sem ar.
- Eu sou a própria confusão. Se alguém se envolveu comigo, querido, conheceu a confusão em pessoa.
- Mas você não tem medo disso? - Ele parecia um pouco preocupado.
- Se fosse uma fase, sim. - Ela percebeu que teria que explicar - Mas não é coisa de uma época, eu sou assim. Se ficar esperando isso passar para começar a viver e sentir, vou chegar aos 60 anos sem ter uma história para contar! - Ele riu - Eu tento ser muito honesta com as pessoas, deixar tudo claro. Mas ser assim meio confusa é parte da minha essência. E se uma pessoa não gosta da minha essência, pra que vai querer se envolver comigo?

Não era exatamente uma pergunta. Não precisava de resposta. Com um balançar de cabeças, os dois concordaram que ela estava certa. Algumas confusões davam tempero à vida. Acrescentavam risadas e graça, tornavam as pessoas diferentes e especiais. Luci contou da sua primeira paixão arrebatadora: dos dois meses que passou sonhando por um rapaz que não estava tão encantado assim, das confusões para encontrá-lo, do fim e de como aprendeu com toda aquela história.

- Você acha que já amou? - Pedro se surpreendeu ao ver aquelas palavras saindo da sua boca. Não imaginaria nunca perguntar aquilo a alguém. Nem, muito menos, perguntar a uma moça que havia conhecido há menos de uma hora. 
- Acho que sim. Não sei se como você e a sua menina passarinho aí... - Os dois riram - Mas já senti como se esse sentimento não coubesse mais em mim!
- E o que aconteceu? Ele foi embora?
- De alguma forma, sim. Ele não se mudou, nem nada. Mas cada um seguiu sua vida. O que tinha de acontecer entre a gente já aconteceu. A gente viveu e marcou um ao outro. 
- E como você esqueceu? - Ele tinha tanta ansiedade no olhar que parecia querer encontrar alguma fórmula mágica.
- Eu não esqueci, ressignifiquei. Alguma hora, quando você menos esperar, isso também vai acontecer com você, pode crer.

A conversa ficou mais leve. Pedro contou das possibilidades de planos para o futuro. Luci explicou que gostava de tantas coisas que não sabia ao certo nem quais eram as suas opções. Pedro contou dos planos de viajar, Luci contou dos perrengues que já tinha passado nas viagens. Pedro contou a história de como os pais se conheceram, Luci contou sobre como descobriu que os pais tinham se separado. Pedro indicou o restaurante que mais gostava na cidade, e Luci lhe mostrou as fotos que havia tirado da sua doceria favorita.

O elevador desemperrou com um estrondo. Alguém começou a gritar do outro lado, tentando fazer contato. Eles se entreolharam. Estavam suados e exaustos, mas pareciam menos consumidos. A cabeça mais leve, a alma menos angustiada, o corpo menos comprimido da pressão do dia a dia. Não demorou muito para serem tirados do elevador. Luci recolheu todas as suas coisas e, rodeada pelas pessoas que foram ajudar no resgate, começou a andar até a porta. Quando Pedro percebeu, correu até ela.

- Você pode me dar seu número? - Ele perguntou, esperançoso.
- Eu não sei... - Luci segurou uma de suas mãos, ainda carregada de coisas - Acho melhor não.
- Mas por quê? Eu gostei tanto de conversar com você! - Ele falou sem se conter. Era a mais pura verdade. Fazia muito tempo que uma conversa não lhe tocava tanto.
- Eu também. Mas dois confusos não vão se ajudar tanto... E você precisa resolver o que sente pela menina passarinho.
- Você já me ajudou um bocado. No elevador. - Ele deu um sorriso sincero - Obrigada.
- Eu sei que sim. Por nada. - Ela já ia saindo, quando novamente se virou para ele - Acho que essa era uma daquelas coisas que tinham que acontecer. Sabe, esse encontro, essa conversa, essas ideias trocadas. - Ele concordou com a cabeça e ela lhe deu um beijinho na bochecha - Você acredita em destino. Quem sabe um dia a gente não se encontra por aí, com a cabeça mais clara e o coração mais livre?

E ela saiu. Carregada de coisas, mas com um sorriso no rosto que mostrava o quanto a mente estava revitalizada. Com o coração leve, sem expectativas, sem medos. Saiu como quem diz "oi, mundo, eu voltei!". Saiu ainda sem ter clareza de caminhos e opções, mas com a certeza de que a vida daria certo. 

Ele demorou mais um pouquinho e saiu com a confiança de que ficaria bem. O coração menos apertado, pela sensação de ser compreendido. Tinha esperança de que a dor ia passar. Ele também ia encontrar suas asas para voar.

Alguns encontros tinham que acontecer. Por mais breves que fossem. Por mais que aparentemente pudessem ser insignificantes. Algumas trocas precisam ser feitas, experiências passadas, sentimentos compartilhados. Algumas pessoas passam pela vida não para ficar, mas para marcar. Elas não são o destino, mas ensinam a aproveitar a viagem. 



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