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Oh, Ana Júlia




   Ana Júlia era menina de grandes amores. Foi assim com o cachorrinho que ganhou aos cinco anos. Era assim com a avó, que ajudou na sua criação. Era assim até com o pôster do ator de Malhação. Ela deitava na cama, olhava para cima e suspirava. Sonhava com o dia em que seus grandes amores de sonho fossem reais, com o dia em que tivesse alguém para chamar de seu. Ana Júlia tinha só treze anos, mas já queria tanto ser a protagonista da música que fez sucesso quando ela nem era nascida.
   Quando completou quinze anos, fez uma festa daquelas. O buffet era o melhor da cidade, ela trocava de roupa três vezes e o príncipe da valsa era o ator da modinha. Ela estava linda e sorridente, mas queria mesmo era ter alguém especial para levá-la para dançar.
   Na festa do trote da faculdade, Ana Júlia era das mais arrumadas: ainda que molhada e pintada, tinha arranjado um jeito de ficar bonita. Não tinha arranjado era um paquera naquela festa, ninguém com quem ela fosse perder horas conversando no dia seguinte, criar expectativas e depois se ver iludida, como duas das suas amigas.
   Aos vinte anos, ela conheceu um carioca num congresso em Floripa. Passou os três dias exibindo o rapaz em todos os lugares aonde ia. Tirou milhões de fotos e fez questão de compartilhar com todas as amigas. Ele ficou no Rio, ela voltou para Bahia. E fez daquela história o seu famoso conto de fadas. Ela quase acreditava que ele tivesse asas. Contava para todos como aquele amor de três dias tinha sido intenso e verdadeiro. Eles nem mais se falavam, mas Ana Júlia gostava de achar que sofria por amor, só para acreditar que um dia havia amado.
   Um dia, ela decidiu desistir do sonho de dormir abraçada. Desistiu da ilusão de viver um roteiro romântico com um galã de novela. Desistiu dos planos de um futuro casamento nas Maldivas. Desistiu do cabelo perfeitamente liso e sem frizz. Desistiu de postar foto todo dia nas redes sociais. Um dia, ela desistiu de se esforçar tanto para ser o que achava que os outros queriam que ela fosse. Ela desistiu, olhou no espelho, e viu que podia ser muito mais do que pensava que era.
   Ana Júlia sentiu a libertação de ir à padaria vestindo calça de moletom. Experimentou sair de cabelos molhados e deixar o sol secar. Desinstalou o tinder, o happn e o terceiro aplicativo que ela estava começando a testar. Deliciou-se com a sensação de comer um chocolate sem culpa por engordar.
   Ela desistiu e, finalmente, sorriu. Sorriu para o mundo, ao observar a beleza que se escondia atrás do espelho. Sorriu para esse mesmo espelho, ao perceber o quanto o seu olhar ficava alegre e bonito quando ela sorria. Sorriu para dentro de si, quando percebeu que o amor próprio era o amor que ela há tanto tempo vinha procurando.
   Ana Júlia acabou espalhando amor por aí, sem buscar alguém perfeito que o pudesse devolver. Ela dava bom dia de forma alegre, agradecia sempre, e se enchia de luz cada vez que o sol nascia. Ela também acabou vivendo mais um grande amor: um dia esbarrou num rapaz comum, e suas vidas se entrelaçaram tão fácil quanto respirar. Ela constatou que a solução era só não procurar. Quando deixou que a vida andasse, quando se libertou das pressões e vaidades, e aprendeu a se amar e a praticar o amor com o mundo à sua volta, a vida lhe devolveu amor. E Ana Júlia, que sempre foi de grandes amores, adorou.

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