Pular para o conteúdo principal

Desculpe o transtorno, você não precisa invadir


   Ele era um escritor famoso, cineasta reconhecido no circuito alternativo e humorista cult. Ela cantava. E atuava. E sorria. Naquele dia, foi dormir depois de compor uma música. Ele apagou no sofá depois de publicar um texto. Só acordaria na tarde do dia seguinte. Ela acordou cedo, tomou banho, preparou um chá, regou as plantas. Ia sair para correr, quando pegou o celular. E não entendeu nada.
   Uma enxurrada de mensagens invadia suas redes sociais, centenas de desconhecidos falando sobre sua vida, sobre seus romances, sobre suas memórias. Ela simplesmente acordou no meio de uma comédia romântica já acabada, em que as pessoas no cinema se levantavam, sorriam e comentavam sobre como a história era linda, como o casal deveria ter ficado junto e como eles também queriam um amor digno de filme. O problema é que aquilo na tela era a sua vida, e ela não sabia que estava sendo gravada.
   Ele contou como eles se conheceram, e todo mundo achou fofo. Mas ele falou do quanto ela errava na aula em que a viu pela primeira vez. E ela se esforçava. Não queria ser reduzida à imagem da cena engraçada em que a mocinha encanta o mocinho com seu jeito destrambelhado. Ele contou aonde iam, o que comiam, o que gostavam de fazer. Era tudo lindo, mas era dela. Era ela, pura e exposta, a intimidade da sua própria história disposta para quem quisesse ler.
   Ele não contou da primeira briga. Nem da segunda, nem da terceira, muito menos da última. Ele não falou de quando choraram juntos, do porque decidiram terminar. E nem devia. Aquilo era deles, não do mundo. Mas todo mundo achava que sabia, que conhecia, que tinha propriedade para falar. E essas pessoas falavam demais, pediam para voltar, para amar, para fazerem eles felizes.
   Ela não sabia por que ele tinha feito aquilo. Talvez fosse pura propaganda, jogada de marketing. Alguns o demonizaram só por essa possibilidade. Talvez fosse uma recaída dele, um momento de saudade que qualquer pessoa sente. Outros tantos o idolatraram por isso. Talvez fosse só uma homenagem a alguém que ele amou, que viveu momentos bons, mas acabou. E ninguém tinha nada a ver com essa história, porque era memória deles, e de ninguém mais.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Amor-passarinho

O amor precisa ser livre. Se não for, simplesmente não será amor. O amor precisa ser livre como passarinho. Precisa poder voar. Precisa ter a liberdade de construir outro ninho. O amor precisa ficar porque quer estar. Não adianta muito ficar apenas porque as asas cortadas já não conseguem voar.  O amor precisa ser livre - no início, no meio e no final - para que continue sendo amor, não posse. Precisa ser livre para poder se transformar, sem se prender em amarras. Só o amor livre consegue se transmutar em outras formas de gostar. O amor precisa ser livre, ainda que seja para voarmos para longe dele. É preciso perceber a hora de pousar, mas também a de ir embora. O amor livre é aquele que se alegra com os grandes voos do outro, mesmo que os ventos levem para outros caminhos. Gosto da metáfora do amor-passarinho: dos voos, dos ninhos, da beleza de poder ir, da sinceridade do querer ficar, da independência de conseguir planar sozinho.  Meu amor-passarinho vive d

Toda noite de insônia eu penso em te escrever

   Eu amava ouvir sua voz. E também amava ler suas mensagens e imaginar que estava ouvindo sua voz. Adorava o jeito que só você me chamava, as brincadeiras que só você entendia, as conversas que só a gente tinha. Eu escrevi tantos textos sobre você, e quase nenhum deles você chegou a ler. Tantas coisas eu pensei em te dizer, e você já não estava mais aqui para escutar.    Você sabe que eu costumo dormir fácil. Quando a aula está chata, quando o caminho é longo, quando ainda há dez minutos antes do próximo compromisso. Eu mal fecho os olhos e já estou dormindo. Mesmo assim, andei tendo umas noites de insônia, uns sonhos perturbados. Em quase todas elas, pensei em te escrever. Pensei em te contar da nova receita que eu aprendi, daquela minha amiga que terminou com o namorado babaca, da faculdade que anda uma loucura. Às vezes eu nem tenho nada para falar, mas ainda vem à cabeça aquele hábito antigo de pegar o celular, escrever nem que seja apenas “olá”.    Toda noite de insônia eu v

João e Maria

Já dizia Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história”. As histórias da vida vivem se cruzando, se entrelaçando, brincando de se encontrar e desencontrar. Mas essa história não tem Teresa, não tem Raimundo, não tem Joaquim e nem Lili, e muito menos J. Pinto Fernandes. É a história de João e Maria, sem bruxa, sem casa de doces, sem irmãos perdidos na floresta. João era do Sul, e foi morar em Portugal para estudar economia. Maria era baiana, da terra do dendê, do carnaval e da praia. Atravessou o atlântico para, em seis meses, vivenciar as raízes do Direito que aprendia. Coimbra, dos estudantes, dos doutores e da saudade foi o cenário dessa história que eu já contei como começou . João e Maria encontraram